Crônicas de Cinema


Luzes da cidade (I) (O anjo da paz)

LUZES DA CIDADE (I) (O ANJO DA PAZ)

 

Um dia, na cidade de Los Angeles, me foi dado ver uma coisa emocionante. Às primeiras imagens de guerra num jornal cinematográfico, o público que enchia o cinema começou a vaiar. Foi uma vaia estrondosa, que sufocou umas poucas palmas tímidas a saudar na tela a figura de um conquistador, e o estourar das bombas e morteiros nos campos de batalha.

O povo vaiava a guerra. Não aquela determinada guerra, de que participava com o seu sangue, mas a guerra em si, qualquer guerra, a sua existência entre os homens e a exaltação do espírito guerreiro. Naquele dia, o povo que enchia um cinema de Los Angeles vaiou a guerra e tudo o que ela representa de horror e atraso de vida. O povo execrou a guerra com toda a sua força coletiva, e não hesitou em manifestá-lo claramente, em apupos e assovios que se estenderam durante todo o decorrer das imagens da tela.

O que fazia o povo assim vaiar uma guerra pela qual estava pagando com o seu sangue? Que impulso o levava a clamar contra a violência que se desenrolava diante de seus olhos — ele já por demais habituado a tais imagens, encontráveis diariamente em todos os cinemas da sua cidade? O que fazia o povo vaiar assim a guerra era a presença de um anjo dentro desse cinema, a sua presença cotidiana. Porque aquele cinema vinha sendo, desde alguns dias, habitado pelo anjo da paz, e as multidões vinham vê-lo caminhar entre os homens, metido em sua estranha indumentária a que faltavam asas — mas um anjo, um legítimo anjo, com bondade, e a esperança e a coragem de um anjo, e sobretudo sua mudez. Sim, porque é coisa sabida que um verdadeiro anjo não fala.

O Vagabundo voltara às telas, depois de muitos anos. Voltara com os mesmos pés espalhados, o mesmo fraque roto, o mesmo chapéu-coco sempre no alto, saudando cortesmente a todos. O mesmo medo à polícia, o mesmo entusiasmo pela vida, o mesmo eterno lirismo e o mesmo amor à mulher. Voltara o Homenzinho com o seu olhar batido, sua fome, seu patético, sua paciência para a luta, trazendo em sua pantomima uma mensagem simples de amor e perdão.

Sua presença por umas poucas semanas na cidade de Los Angeles amoleceu, no coração das plateias, o barro duro da vida com lágrimas de riso e de pranto. Todos se sentiram um pouco melhores, bastante mais certos de que a existência, e o mundo, não são feitos apenas de egoísmo, mal-entendidos, guerras e delações.

Agora o Vagabundo veio nos fazer uma visita. Que a sua presença, aliás, pouco noticiada, entre nós, possa trazer ao coração dos homens desta cidade, a que a luta cotidiana, os sacrifícios impostos, corrupção dos tempos, a desatenção e indiferença gerais vêm também endurecendo —, que ela possa trazer o calor das lágrimas que a sua emocionante figura e o seu emocionante caminho sabem melhor que nada neste mundo despertar e desatar.

 

Última Hora, 4 de dezembro de 1951