Peças teatrais


Cordélia e o peregrino

CORDÉLIA E O PEREGRINO

 

Interlúdio elegíaco

Este texto foi escrito paralelamente à realização de minhas Cinco elegias (de algumas delas, pelo menos...), às quais deveria pertencer, não se houvesse transformado, à medida, numa forma lírico-teatral. Disso já lá vão muitos anos. Há, pois, que lê-lo dentro do espírito do tempo, e ciente de que o poeta de então era bem mais moço e complicado que o atual.

Agrada-me, nele, a sinceridade e paixão com que foi escrito, e a realidade saudável de certas tiradas, e não posso deixar de ver nisso a semente da mudança operada no poeta que hoje sou, não sei se melhor ou pior, mas, por certo, mais humano e infinitamente mais próximo da terra.

Penitencio-me de sua saída tão fora de tempo. Anima-me, no entanto, a ideia de que a maioria daqueles que o vão ler são pessoas com um julgamento já formado sobre o poeta e sua poesia.

 

Personagens

Cordélia

O Peregrino

 

Um abrigo na montanha, sombrio, rude mesmo. Paredes nuas, teto baixo de vigas escuras, tortuosas. Móveis simples, abandonados. Duas ou três velhas reproduções de quadros nas paredes da direita e da esquerda. Tudo isso, arquitetura e mobiliário, obedecendo à fantasia do poeta feito cenarista, que os poderá compor na medida inconsciente da sua emoção. Porta de entrada e grandes janelas ao fundo, de onde se vê o campo como parte essencial da cena. Terra chã, de poucas árvores e estranhas, figurando não importa que desejo íntimo do poeta de esculpir a sua criação. Na hipótese de uma abertura da cena, o Peregrino achar-se-ia imóvel junto à porta, como perscrutando o silêncio. Fora, um sol das almas tornaria rosa a paisagem nua. A pouco e pouco viria a sombra e por um instante deixar-se-ia estar quase como uma presença. Depois, Vésper surgiria lenta, iluminada e sozinha. A calma de todas as coisas deveria existir intensamente por alguns segundos.

Ao falarem, as figuras deveriam buscar os gestos essenciais às palavras. A palavras simples, gestos singelos; a palavras nobres, gestos hieráticos. Em repouso, a imobilidade perfeita, estabilizada na última vibração da tônica anterior. Sempre que pela necessidade de sua expressão as palavras arrancassem música da voz humana, as figuras deveriam dançar. Também esta dança, cujos movimentos e voo mesmo dos vocábulos proviriam, deveria ficar em sua composição a cargo do poeta feito coreógrafo que a transportaria, eventualmente, para o plano da ação. Assim é que a dança procuraria ansiosamente exprimir o que não ficou dito em poesia, numa tentativa invejosa de a ultrapassar. Nesse jogo de forças o poeta seria tanto diretor como ator, atendendo a todas as necessidades líricas da sua criação, e usando, para atingir seu fim, de qualquer recurso de ordem natural ou sobrenatural, de todas as invenções da mecânica inconsciente, de todos os devaneios, presságios, encantações que pudessem, por um segundo que fosse, arrancá-lo de sua sordidez.

 

Primeiro movimento

O PEREGRINO (alçando os braços)
Ó amiga, estrela
Nesse momento íntimo de silêncio em mim!
Ó ave, lírio triste
Ó tarde neste ângelus da alma, ó serenidade!

CORO DAS MULHERES (invisível)
Vênus em flor
Atende ao amor
Sobre o doce trigo
Repousa comigo.

O PEREGRINO
Por que falar de amor junto do triste?

CORO DAS MULHERES (invisível)
No nosso lazer
Queremos prazer.

O PEREGRINO
Ai de mim, eu venho de prazer…

                                  Dá alguns passos à toa: depois aproxima-se da mesa e acende um lampião. A noite se faz murmurosa, fora.

CORO DAS MULHERES (bem próximo)
Queremos prazer!

O PEREGRINO
Astro, eu quero o esquecimento inteiro
Astro, eu quero a solidão!

CORO DAS MULHERES (veemente)
No meu coração
Não há solidão
Repouso ou carinho
São água e são vinho
No milho que doura
Renasce a lavoura
E a terra colhida
É a melhor da vida.

CORO DOS LAVRADORES (distante)
O sol apagado
Deixa a sua chama.
A noite nos chama…

UMA VOZ DE HOMEM
Dorme, rei do prado!

CORO DAS MULHERES
A terra colhida
É o melhor da vida.

O PEREGRINO
Ah, a nostalgia das desilusões…

                                  Ouvem-se vozes em murmúrios, entrecortadas por risos de homens e mulheres.

Não deve a alegria perturbar o desespero humano
Nem deve o homem aguardar eternamente.
Meu destino é fugir.

                                  Novamente a onda alegre de vozes questionando.

UMA VOZ DE MULHER
...e ele me abraçou e me beijou!

OUTRA VOZ DE MULHER
...se te visse…

                                  Palavras que se perdem, risadas.

A PRIMEIRA VOZ
...não te perdoaria!

A SEGUNDA VOZ
Que me importa! Deu-me uma rosa e fui com ele…

O PEREGRINO
Oh, ir antes que venha alguém!
Quem me diria
Não ser novamente doce o contato
Da mulher.

OUTRA VOZ DE MULHER
...olha como é forte…

UMA VOZ DE HOMEM
Nossa! Quanto riso…

O PEREGRINO (sentindo o silêncio que pousou de repente)
Ah, nem poder chorar ao menos
Nem sentir sobre a desventura o calor das lágrimas!
Ter apenas como legado o frio
E apenas arrancar das coisas o sentimento
Da impossibilidade de tudo!
Ouvir nos meus ouvidos
Vozes que são como frutos cheios de mel
Sentir vozes no vento
Perfumes de flores e ter na boca o gosto invisível das resinas!
Ter a inveja de viver
Corroendo a alma como uma íntima úlcera!
Compreender com uma lucidez de pássaro
O motivo fundo dos gestos e das tragédias
E nada poder, nada possuir
Apenas porque há no espírito uma sede impossível de calma
E na carne uma sede impossível de amor!

                                   Pausa.

Ah, partir, partir
Partir de mim, do que sou, do que serei
Partir do visível para o imaginário
Na asa presente da morte…

                                  Sinos ao longe. O Peregrino escuta. Sobem de novo as vozes, invisíveis.

UMA VOZ DE HOMEM
Salve rainha da serra
Andorinha da bonança
No teu ventre de criança
Descansa o filho da terra.

UMA VOZ DE MULHER
Salve bem dos pescadores
Lausperene do Senhor
Da mulher do lavrador
Faz a mãe de lavradores.

O PEREGRINO (escondendo o rosto nas mãos)
Eu te maldigo, mulher
Eu te maldigo!
És a máscara do frio e da angústia no fundo da treva
E tens flores como a primavera, frutos como o outono, brotos como o estio…
Vens como a renúncia e és a impassibilidade e o exaspero
Monstro!
Eu te detesto!
Teu prazer é pobre, eu o arranco tão bem dos meus dedos como de meu espírito
E ele me mata.
Quem és, mulher? onde vives? em que ventre?
Que fúria te lança, perfeita, no caos humano, demônio
És o mal?

 

Segundo movimento

                                 Batem à porta. O Peregrino volta-se num gesto impaciente.

O PEREGRINO
Quem és, o que queres
Por que bates à minha porta que nada tenho?
Se és meu pai volta que não há mais amor em mim.
Se és um mendigo, por que não morres?
Se és um amigo, por que não me desprezas?
Vai! Deixa o miserável em sossego!

A VOZ DE CORDÉLIA
Sou eu... Cordélia.

O PEREGRINO (com desconhecimento)
Cordélia?

                                 Corre a abrir. Cordélia entra e fica parada, humildemente parada, olhando-o.

Cordélia…

                                 Súbito exclama, como se a reconhecesse.

CORDÉLIA!

CORDÉLIA (com repentina desconfiança)
Por que me abriste a porta, que para ninguém abres?

O PEREGRINO (tomando-lhe a mão)
Vem, entra, Cordélia
Fala, Cordélia…

CORDÉLIA
Há muito pensei em ti.
Vim para que me mates e não para que me socorras.
Oh, perdi-me do mundo, na montanha onde mora o vento
E sinto que enlouqueci.
Eram visões espantosas, e entre elas
A face monstruosa, geral e desesperada.
Sê meu amigo!
Nem te conheço, mas tanto pensei em ti, meu irmão.
Vi tua casa na minha agonia e tua alma na minha loucura
E eram abrigos sonhados, abrigos por que chorei nas minhas penas.
Tem piedade de tua escrava!
Cordélia veio das perigosas paragens onde o mar é a lua, constante espelho
Da mágoa e do remorso.
Veio trêmula, agitada, pobre mariposa, cega de luz na treva
Triste Cordélia!
Por que teus olhos são tão doces?
Afasta-te de mim! Eu sou a culpa, a expiação!
Socorre-me!
Ah, dá-me tua mão de homem, ser divino
Deixa-me chorar em teu peito de misericórdia
Por que foste bom para Cordélia?
Cordélia veio da água escura, onde as sereias morrem nas dores do amor
Veio se arrastando, pobre, frágil Cordélia; forte Cordélia!
Vê minhas mãos como sangram e meus seios como estão doloridos
E tu lhe abriste a porta, louco!

O PEREGRINO (enlaçando-a)
Vem ver.
O campo repousa morto — e realmente
Eu o sinto morto. Vem ver como a noite vive
Sobre a grande vastidão deserta…

                                 Pausa.

É estranho... nada se move
Nada…
No entanto, se minha mão desce ao teu seio eu o sinto fremir
E invadir a noite como um punhal dilacerando um véu…
Cordélia, eu tenho medo de dormir.
O sono iguala a miséria dos homens
E eu tenho muito medo de dormir…
Mas que sei eu do meu sofrimento?
Ouço... neste momento ouço o sopro perdido de todas as vozes
O sussurro de todos os amantes, a prece pálida, estertorante
Dos jovens que acabaram de morrer. Ouço o dormir do mundo
Crianças e mulheres — mulheres
Adúlteras e intactas
Mães e irmãs como tu
Mulheres — ai de mim!

                                 Pausa.

Cordélia,
Eu te amo
E eu sou o irremediável.
É preciso que eu esteja acordado
Para velar sobre a putrefação das criaturas
E isso é qualquer coisa de monstruoso demais.
Vê o campo. Além jaz a cidade
Em luzes. É lá que o adolescente se levanta
E espreita inclinado o corpo nu da irmã que dorme
E o seu sêmen, a terra o receberá.
Lá a carne dos homens palpita de vermes
Oh
Acima de tudo, oh, eu vejo a torre desolada das igrejas
E nas naves noturnas ouço o grande pranto que se derrama…
Senhor, é o teu sofrimento?

CORDÉLIA
Eu não sei o que diga.
Tua linguagem é escura como o sono da carne cansada
Mas se falas eu te compreendo — e não seria
Porque te amasse…
Vê o que olhas, a noite!
Há alguma coisa, uma crispação, uma voz que não morreu
Escuta…

O PEREGRINO
Escuto, escuto dizer
Que há um espírito sofrendo…

CORDÉLIA
Pudesse eu te dizer: vem, meu amado
Esquece…

 

Terceiro movimento

O PEREGRINO
Cordélia, fala de esquecimento
Fala da nuvem, fala da andorinha!
Diz a palavra sem memória
Que há de enlouquecer serenamente o meu espírito.
Ah, que grande temor de morte!
Que grande temor de morte em mim farfalha
Como se eu fosse um túmulo na noite!
Sente! As estrelas vão devagarinho, vão
Embuçadas, como em prece…
Neste instante mesmo corações crepitam
Em últimos estertores de luz! chama imponderável
De carnes jovens que não sofreram. Dize:
Rezam as estrelas em sua passagem pela terra
Mas a que Deus? Deus existe
Para os que morrem sem amor?

                                 Pausa longa.

CORDÉLIA
Que grande alegria, súbito!
Ouve: abriremos um vinho velho, celebraremos
Tanta emoção no mundo! Bêbados
Não nos envergonharemos da nossa nudez
Seremos um do outro! Amanhã
É outro dia, o sol voltará, a vida há de nos sorrir
Como para as crianças que dormem juntas
A madrugada é bom pretexto. Cordélia
Minha…

CORDÉLIA (afastando-se dele recita maquinalmente)
Sou pobre, não tenho pátria
Meu raio de luz, perdi-o
Donzela, meu devaneio
Onde está?

Sou cega, brilho sem ver
Meu olhar, não tenho sexo
Minha beleza não arde
Enlouquece.

Tenho frio. Sigo sem norte
Como o vento pela noite
Ninguém me quer, sou a morte
É tarde!

                                  No campo, distantes, acendem-se fogos de fogueiras. Ouve-se a algazarra surda de festejos que começam e o tirotear de foguetes. Mais tarde sobem as notas de uma viola.

UMA VOZ DE HOMEM (longínqua)
Eu entro como o ladrão
No quarto da minha amada
Trago quente o coração
Do frio da caminhada
Mas quando a vejo, visão
Mais vista, mais desejada
Embora eu seja o ladrão
Minha alma é que sai roubada.

Eu saio como o vilão
Do quarto da minha amada
Trago dinheiro na mão
E um beijo para a jornada
Mas logo a deixo, emoção
Mais tida, mais renovada
Desejo mais para o pão
E mais para a caminhada.

Eu peno como o cativo
Se longe da minha amada
Não estou morto nem estou vivo
Tudo sinto e não sou nada
No corpo que levo altivo
Sofre-me a carne calada
Ai de mim, que tão esquivo
Prendi-me na minha amada!

O PEREGRINO (sorrindo)
Voz que não és nem sossego, nem arrependimento…

                                 A viola ainda ponteia, fracamente. Depois silencia.

O PEREGRINO
Em breve
O cantador terá nos braços a mulher para quem canta
Em seu peito
Ela se acolherá como o pássaro na árvore, sem pânico
No entanto, à vista de seu sexo
Primeiro tremerá de horror e procurará esconder a vergonha
No escuro em torno…
Não propicia a treva ao crime?

                                 De novo ouve-se a viola plangendo.

UMA VOZ DE MULHER
Sofre pelo que não ama
E de noite em sua cama
Dorme sozinho
Sofre pelo que não chama
De manhã, em sua cama
O seu carinho.

Sofre pelo que procura
Apenas uma aventura
Por esta vida
E tem de cada criatura
O viço que pouco dura
Na flor colhida.

Sofre por quem não espera
E vê em cada primavera
O doce instante
E que não planta um pé de hera
Com que chegar à primavera
Desabrochante.

CORDÉLIA (dramática)
É triste o sexo
Das mulheres infecundas.

O PEREGRINO
Cordélia, também é triste
Criar e ser ferido de morte, ou criá-lo
Feridos de morte nós mesmos, e um dia
Terrível entre todos, dar-lhe adeus, sem lágrimas
Porque é preciso não chorar!

 

Quarto movimento

CORDÉLIA (impassível, monocórdia)
Ai de mim
Ai de mim, mil vezes ai de mim
Sou seca, sofro tanto, sou seca
Não dou mel como as abelhas, ai de mim
Não dou resina como as árvores, ai de mim
Sou seca, sem umidade; no vórtice do meu sexo
Não se afogam os homens; em vão darei minha última virgindade
Ao que primeiro acenar, de mim se erguerá alvar
Um rosto sem virilidade; sou seca
Como os açudes das terras deslembradas; não tenho brotos
Sou seca, limpa como o cristal; minhas axilas
Não dão cheiro; minhas coxas
Não suam; sou seca como a estrela vespertina
Meu corpo nu é um fruto perfeito porém verde
Nenhuma semente romperá minha pele hermética
Sou seca, imasturbável, recendo a flores
Não me possuem os homens; sobre as minhas
Não sinto as suas pernas fibrosas nem o deslocamento de seus ossos
Cordélia é seca, ai dela! Em vão.
É seca, imarcescível: o último que a possuiu
Enlouqueceu: foi um santo.

O PEREGRINO (tomando-lhe as mãos)
Cordélia, quando ainda há pouco
Aqui neste abrigo, oculto de todos
Eu me deixei cair no abismo interior
Desci a regiões onde nunca suspeitarias
Nem águas tão pútridas, nem flores tão belas.
Nada permanece que nasce da poesia; a alma do poeta
É como o espelho de uma lágrima, onde se miram dois mundos
O efêmero que vivemos, e o íntimo que morre conosco
E ambos passam! Não são as palavras
Que morrem; é o poeta que morre
Levando consigo o que as palavras apenas revelam
De tão grande!
É flor perfeita a poesia, mas não duradoura.
Cordélia; que monstro sou de sordidez
Que tudo de puro em mim nasce do pântano
Tal certas flores; e há um silêncio em mim, um silêncio
Que só de ouvi-lo lanço-me como uma centelha alucinada contra o espaço
Em busca de um gemido, um sopro, um vibrar de asas
Que me torne à razão, porque sou um grande desequilíbrio em mim mesmo
E um grande mal-entendido no mundo; teu pobre sofrimento
De mulher é átomo perdido no caos de que sou o vazio
Há gritos terríveis em mim, orgulhos
De rei, minha vaidade é o talvegue; tenho
A grande justificativa humana do meu desassossego
Tudo me é permitido!

                                 De novo repontam sons de cordas nos longes dos campos.

UMA VOZ DE HOMEM
Eu queria a minha amiga
Para se juntar comigo
O amigo amigo da amiga          \
E a amiga só para o amigo.       /Coro, bis

Para ser minha na cama
E para brincar comigo
O amigo só para a amiga          \
E a amiga do seu amigo.           /Coro, bis

Para gozar na ventura
E padecer no perigo
O amigo da sua amiga              \
E a amiga perto do amigo.         /Coro, bis

Para dizer-me no ouvido
O que vos dizer não digo
O amigo perto da amiga            \
E a amiga amiga do amigo.        /Coro, bis

CORDÉLIA (cantarola distraidamente)
O amigo perto da amiga
E a amiga perto do amigo.

                                 Chega-se subitamente ao companheiro e beija-o.

O PEREGRINO
Amor…

CORDÉLIA
Mais! Mais! Mais!
Até que sinta o gosto de tua miséria!

O PEREGRINO (olhando-a nos olhos)
Amiga, vem comigo
Eu sou o escravo.

CORDÉLIA (com zelo)
Eu te faria mal, e tu nunca me possuirias
Porque a minha esterilidade é fruto venenoso
Para os homens de muita sede.

O PEREGRINO
Vem, eu sou puro…

CORDÉLIA (afastando-se ligeiramente)
E onde plantarias a tua pureza?

                                 O Peregrino ergue o braço e toca-lhe o peito com o dedo estendido. Cordélia estremece, como em transe. Ao ouvir a música que recomeça ao longe, põe-se a dançar tontamente, como para se livrar do encanto que a toma.

CORDÉLIA (dançando)
Cordélia dança bem
Cordélia canta…

                                 Recita mecanicamente, acompanhando a melodia.

Crê apenas no amor
E em mais nada
Cala, escuta o silêncio
Que nos fala
Mais intimamente; ouve
Sossegada
O amor que despetala
O silêncio…
Deixa as palavras à poesia.

O PEREGRINO (embevecido)
Amada, amada, amada…

CORDÉLIA (risonha)
Sei dançar
E cantarei para distrair as tuas mágoas
Sou ágil, aprenderei o ofício que mais te agradar.
E ganharei para o teu sustento todo o ouro deste mundo
Venderei meu corpo, e tê-lo-ás no entanto intacto
Nada farás senão chamar: Cordélia!
Cordélia virá sempre risonha, e se quiseres, seios nus
Para trazer-te com que faças um poema imortal à terra fecunda
Cordélia te banhará os pés e os enxugará com os seus cabelos
Quentes de amor; e quando
Dela te fartares, Cordélia…

O PEREGRINO
Anjo! Anjo!
Cala-te antes que meu coração se zangue
De o maltratares assim…

CORDÉLIA
Serei tua escrava
Teus são meus pés, meus pelos, meu pescoço.

O PEREGRINO (olhando-a triste)
Não sentes a necessidade de amar em mim?
De te amar? A humildade
Dos meus olhos que não se cansam de tua graça?
Que me importam filhos se eles não forem filhos teus
E de que me serve tua servidão, se só a minha é que é perfeita?
Não vês
Que o menor toque dos teus dedos me pode adormecer
A mim que não durmo? Teu amor é sono
E desvanecimento... Não é te possuir que é grande
É ser possuído por ti…

CORDÉLIA
Tão dito, tão ouvido
Tão lindo…

O PEREGRINO (inquieto)
Por que não me respondes?

CORDÉLIA
Não me pertenço mais…

O PEREGRINO
Mulher, não pertences a ninguém…

CORDÉLIA
Esqueçamos, meu querido
Tudo do passado esqueçamos, esqueçamos…
O que é o passado, para quem dele sofre
Se não um descontentamento do presente? Assim
Esses que se põem a pensar e sentem saudades ou ciúmes
Não é isso ferir a pureza do que se vive?

 

Quinto movimento

O PEREGRINO
Não sente saudades quem se ama
Além do amor; quem ama sofre saudades
De não se amar; grande sentimento é a saudade
Das horas, Cordélia, quando a vista de um caminho
Perdido nos faz lembrar que nunca o trilhamos
Em nossa imaginação; doce sentimento é a saudade
Dos crepúsculos, quando uma nuvem
Em forma de pássaro planta em nosso ser
Asas com que chegar a ela; mas terrível
Sentimento é a saudade quando se transforma em vazio
Exangue, quando é angústia
Matinal, quando é total desalento e flagelação.

CORDÉLIA
Eu sei, amigo; o ermo…

O PEREGRINO
Não, a presença! A água salobra do tédio
Encharcando a carne; o desejo infinito
De contemplar o próprio rosto no vácuo dos espelhos inimigos
Ou a sensação de estar num lugar diferente do mundo
Batido de sossego como um campo depois da batalha.
Ou a vontade de castigar o corpo na sordidez dos prostíbulos
Entre mulheres tristes; ou a gana de beber até transformar-se em lama
Ou de matar... a gana de matar
Em alguém a culpa do nosso tremendo desencontro.

                                  De repente apavora-se e agarra-se, trêmulo, a Cordélia.

CORDÉLIA (afagando-lhe os cabelos)
Pobre, infeliz meu filho…

O PEREGRINO (ajoelhado a seus pés)
Cordélia, leva-me contigo!
Arranca-me desse espaço branco onde se debatem
Todas as minhas ânsias! Afugenta
Esse céu onde boiam túmulos e onde
Estrangula-me a mão impiedosa do invisível.
Ah Não mais me valem as lágrimas e as grandes
Carnificinas de mim mesmo; desfibraram-se meus braços
Para que possa jamais clamar; enfraqueceram-se
Minhas pernas para que possa jamais
Manter-me imóvel; vou trôpego
Sem parar; sou uma queda em suspensão
Tudo me arrasta
À terra que me apavora.
Que será de mim
Na imobilidade? Que Deus terrível
Virá, de noite, lançar na boca do meu túmulo
O facho de uma estrela com que ver-me apodrecer
E como abrirei os olhos
Se os terei selados pela morte; e como lhe falarei
Se terei rígida a boca e os dentes cerrados?
Cordélia, o horror de não permanecer
É pior do que a morte; não ver mais
Nem uma madrugada, nem uma árvore
Que pela sua sombra se fez amiga…

CORDÉLIA (ríspida)
Quem és, homem
Que me queres e não queres a morte?
Eu sou a morte! Mulher, eu sou
A morte! Tudo em mim passa, fonte de vida
Que sou; meus desejos, meus beijos
Morrem, não têm lembrança; morrem meus
Gestos de flor, morre a dança em mim; minhas canções
Perpetuam-se em outras vozes que não a minha
Com outras palavras que não as minhas! Quem és, homem
Que queres ficar? Que monstro possuis em ti
De desespero? Não ouves
Crepitar em mim a chama que se extingue
Para o teu alento? Não sentes
A cada gesto meu o esvoaçar de uma nota de música
Que se perde para integrar tua harmonia?
Quem és, homem
Que só vives da irrealidade de teus sonhos?
Deixa-te morrer, como as plantas
Sofrem elas?
Sofre o pássaro que encontra a morte
Em meio ao voo? Satisfaz-te
De morrer, morte única há em mim
Que dou túmulo a todo o desejo dos homens!

 

Sexto movimento

O PEREGRINO
Vejo-te como nunca vi ninguém, transparente
Como uma aurora nascitura; e à tua volta
Sombras que se desfazem.
Vejo teu coração pulsar
Como um pássaro no ovo, e em tuas veias
Correrem linfas róseas como nascentes matutinas.
Vejo-te, amiga, amanhecente
E no berço de teu ventre, envolto
Nas teias orvalhadas da tua placenta, vejo-me
A mim, anterior ao útero materno.
És tu minha mãe, e eu teu filho
Ingênito? Sou eu criado
De ti infecunda? És tu a poesia
Por que chorei? a calma por que chorei?
És o túmulo onde vivo, e de que sou apenas
Uma haste na terra, inclinada
Sobre a vertente? — e tudo o que passa
Não existe, pois, senão como paisagem
De mim mesmo imutável?

CORDÉLIA
Pobre de mim, minha inteligência
Bebe da tua as palavras, mas não se deslumbra.
Sou uma mulher simples; meu seio é materno
Para a frente dos homens; meu sexo
É bom e justo para o prazer; mas eu nada
Crio além da morte; muito sofro
Da minha inexistência; mas não quisera
Existir, tampouco. Quisera poder parir filhos
Como as águas e vê-los a meu lado
Brincando e se aquecendo em mim.
Mas sou seca
Secou-me um homem.

O PEREGRINO
Falas como alguém
Que eu vi, talvez em sonhos, não me lembro
Quando... uma vez... perdida nos
Campos da infância, longe…
Dize-me: criaturas, nada temos de vivo?

CORDÉLIA
Sim, o instante
Talvez, em que nascemos
E em que choramos e que limita
Dois túmulos, o ventre materno e o ventre da terra.
Talvez este somente
Quando, expelidos, recebemos
A centelha que nos dá diferentes destinos.
Tudo nos cria; é uma força
Monstruosa, a vida! A água, o fogo
A terra, o ar, o sal, que se combinam para
Nos fazer brotar; e que apenas
Broto, esvaem-se de nós através
Enquanto crescemos numa ansiedade de ser
Folha, flor, fruto, árvore eterna
Sem velhice... Ah
Morremos! Morremos quando
Abertos em dois, saltam de nós outros destinos
Não como sementes de frutos
Semelhantes — mas como organismos diferentes, vozes
Que irão negar ou repetir nossas palavras, uma a uma
Em seu próprio benefício; e que um dia
Se esquecerão de nós — é este
O instante da vida — que nos
Cria e mata de um só golpe.
Tudo mais é agonia.

                                  Pausa.

Amar é morrer
Além da morte, é unir
Duas mortes numa só vida; criar
É morrer em si mesmo
Emparedado em si mesmo, morrer
Longamente, a alma a debater-se
No corpo, como num grande mausoléu!

O PEREGRINO
Homens, morremos!
Ah, que nada é o herói
Senão a imagem morta de quem vive — homens
Somos heróis desde o berço.

CORDÉLIA
Só a mulher não morre
Que é a morte; só ela
Vive sem morrer, executando
A cada instante a dança lânguida
De quem se ignora. Só ela. O resto é cinzas.

O PEREGRINO
O que não te diria eu
Se o amor não nos algemasse nas mesmas cadeias
Invisíveis! O que é a mulher
Senão a sua ausência em nós? Já imaginaste
A máquina, mulher, fora de ti
Trabalhando no espaço a ração diária de tragédias
De que se alimentam os homens? Já imaginaste todas as mulheres, e mais tu?
Já pensaste que a mulher não existe, porque
Nada é ela senão a nossa irrealidade
Quando a temos? Ou não compreendes
Que o ser que és não te pertence
Nem a mim, nem a ninguém; mas a ti
E a todos, num desejo
Impossível de unidade?

CORDÉLIA
Como sofres, homem
Não tens medo de teu sofrimento?

O PEREGRINO
Não sofro mais. O sofrimento
Não sou eu, és tu, que existes
Pequenina, com tua vastidão.

CORDÉLIA
Diz-me: tu me amas com amor?

O PEREGRINO
Amor? Não sei... Tu és talvez amor.
És um lugar. És como uma casa
Na montanha, a se repetir
Através de etapas de solidão.
Não sou eu que te quero, és tu que existes
Em meu caminho, como uma presença
Fatal. A fatalidade é tua, não é minha
Eu ando; ando após a tempestade
Que deixas onde passas; és o ar
Que eu respiro; sabendo-te
Descanso; sofro às vezes, mas um segundo teu
Renega tudo. O crime
É a presença de prazer no teu corpo
De mulher; tu chegas e eu
Sei que, oculto no teu ventre
Palpita-te o sexo, quente como um fruto
A que minha força de homem dá direito. Por isso
Minto, violo, roubo, bebo, mato. Tu vês
É impossível! Onde tu vais
Vai-te o sexo. Posso senti-lo
Em cada movimento teu. Que demônio
És tu, mulher, para conseguires viver
Assim violentada por ti mesma?

CORDÉLIA
E o amor?

O PEREGRINO (irônico)
Ah, o amor... o inatingível
O invisível, o ausente, o onisciente
Amor, a sugar como um vácuo
Imenso na criação, a vida de tudo o que existe...

CORDÉLIA
Nada existe fora dele.

O PEREGRINO
Talvez, apenas
A oportunidade única de renascer em Deus
No meio do caminho... Mas Deus
É o nosso caminho, a se estender
Através de solidões; Deus é
A nossa piedade de nós mesmos e
A nossa amargura de não sermos perfeitos
Como a árvore sozinha que um pássaro
Louco plantou num deserto sem memória!

 

Sétimo movimento

                                  Ouvem-se ruídos de últimas vozes. Apagam-se as luzes ao longe. Apenas brilham as estrelas.

UMA VOZ DE MULHER
Na minha cama de paina
Dorme o meu homem cansado.

OUTRA VOZ DE MULHER
Que faina cansou teu homem?

CORO DE VOZES DE MULHERES
Fainas de homem casado!

A PRIMEIRA VOZ
Quanto mais trabalha o homem
Mais longe lhe chega a fama.

CORO DE VOZES DE MULHERES
Labuta o dia no campo
Labuta a noite na cama!

UMA VOZ DE MULHER (fingidamente melancólica)
Meu homem se adormeceu
Sem me prestar atenção…

OUTRA VOZ DE MULHER
Ah, que grande moleirão!

A PRIMEIRA VOZ (suplicante)
Menina, empresta-me o teu?

                                   Novas risadas.

OUTRA VOZ DE MULHER
Bom jardineiro é o meu homem
Que não sai do seu jardim
Rega-me bem regadinha
E fica plantado em mim.

                                   Gargalhadas perdidas de homens e mulheres. Às vezes silêncio, às vezes gritos agudos. Uma grande tensão no ar. Tal ambiente deve permanecer por algum tempo, a dar a impressão de luxúrias na distância.

CORDÉLIA
Calam-se, esmagam-se
Como árvores…

O PEREGRINO (à escuta)
Poder-se-ia ouvir
O bater de seus corações... ouve
O sopro da noite, feito de suspiros…
Sente como recendem os eucaliptos… Escuta, Cordélia
Arrulham as águas... aspira
O hálito das flores e dos corpos
Cordélia…

CORDÉLIA (chegando-se a ele, os braços abertos)
Vem, homem, toma-me!

O PEREGRINO (abraçando-a)
Ter-te é perder-te! Ter-te
É partir de novo; ter-te é recomeçar
As longas caminhadas, à procura
De ti mesma; ter-te é desamar-te
É fugir-te, é despojar-me da minha solidão…
Ó minha amada, não! o sossego em seguida
Mata-me; que faria de ti, tida
Depois? Que brancas ondas
Não levariam do meu pensamento
O teu corpo dormindo? Essas paredes
Que prisão não seriam? E a multidão
De gestos partindo de mim, a se debaterem
Contra a porta aberta? E o perfume da pedra
O tato do vento, a inescrutável
Mirada dos desertos, a fome e a sede dos caminhos
Jamais trilhados? Ó minha amada, não!
Meu destino é partir. Sou apenas um homem
E sua voz.

CORDÉLIA (intimamente abraçada a ele)
O meu amor
Em meu corpo te oferta a natureza
Encontrarás a pedra nos meus seios
E o deslizar dos rios no meu dorso.
Em meus olhos
Terás a noite fria dos desertos
E o perfume em meu sexo
Restitui-te o mar. Vem, Peregrino
Levanta-te e caminha. Minhas estradas
Não chegam. Afogado em meu peito
Verás montanhas. Afogado em meu ventre
Verás pântanos. Nos rumores
Em mim estudarás os grandes cataclismos
E a formação da Terra. Eu sou matéria
Imortal.

O PEREGRINO (desenlaçando-se docemente)
Adeus, amiga
Há que partir, há que fugir de ti.
Tu és a terra, e o que me chama é o espaço
Incriado. Ao longo do caminho
Párias me esperam, para a esmola
Que lhes não darei. Suas faces esquálidas
São o espelho de mim mesmo. A minha solidão

É inenarrável. Presa a mim
Não serás nem beleza nem lembrança
Mas finalmente tédio. Como recordar-te
Presente?Como sentir
A ânsia de voltar, permanentemente? Como
Não odiar-te sem partir?
Partirei, partirei! Serei caminho
E desconforto. Hão de passar por mim
As pétreas catedrais reverberando
O poente; há de passar a árvore
Matutina, a estirar no horizonte
Seus braços sonolentos
Há de passar o mar e suas flores
E hão de passar mulheres
A quem farei felizes e infelizes
Igualmente, e que serão história
Na luta do homem
Contra a morte.

CORDÉLIA
Toma-me, vem.
Se provares de mim, esquecerás
O mistério. Não há mistério
Em nada. É tudo a unidade
Da vida. Meu corpo te repousa
Como a morte que temes. Serei mãe tua
Irmã tua, filha tua. Dou-te
A razão de lutares — e sentimento da revolta e a consciência da luta.
Dou-te mais; dou-te
A manhã, o labor, o tédio, o sono
E o despertar! E o próprio mistério
Inexistente existe em mim
Se quiseres, com que justificar-te
A permanência.

                                   À medida que ouve, o Peregrino aproxima-se dela, e os dois corpos se encontram a meio caminho, as faces unidas, os braços em cruz. Aos poucos se vai fazendo escuro, enquanto uma melodia, a princípio serena, começa a crescer até um infinito de sons desarmônicos a se debaterem na treva geral.

 

Oitavo movimento

                                  Depois, subitamente, voltam o silêncio e a luz. Cordélia encontra-se sozinha, encostada ao umbral. Traz um grande manto a envolvê-la. É o crepúsculo, como no início da ação. A estrela da tarde desperta lentamente até o esplendor total.

CORDÉLIA
Bendito!
Bendito, mil vezes bendito!
Bendito o miserável, o proscrito
Bendito o maldito, o mil vezes maldito, bendito, bendito!
Louvado seja o réprobo, o assassino, o ladrão
O sem-perdão, louvado! Para sempre seja louvado!
Hosana, homem! Hosana, para sempre hosana! Tu
E tua semente. O meu desprezo por ti
É infinito, bendito, bendito!
Covarde
Covarde que só tens inquietação
A irrealidade, mas que deixas em mim
A criação! Hosana, criador
Da criatura, tu cuja ambição
Faz e destrói, tu inventor da angústia
Herói, mártir, escravo, pária, santo
Homem!
Foge! Foge de mim, que te fatigo; foge
Para as tuas guerras, as tuas conquistas, as tuas traições
Possesso! Espedaça-te
Ser de solidão! Chora
O rosto voltado para a noite; teus soluços
Ressoam nas minhas entranhas! Mata, extermina
E extermina-te; rouba e prodigaliza
Ser monstruoso! E volta
Rastejante, com o sorriso da mentira
Estampado, ou com o divino olhar que me estremece
Até a carne de meus ossos!
Homem!
Foge de mim, que abandonaste em mim
O que te faz viver; deserta-me, maldito
Bendito, bendito, mil vezes bendito
Hosana, filho meu! Segue
Onde te chama a tua miséria. Aqui me deixo
Quieta, nesta tarde que não passará nunca
À espera de que passe — e com ela
A tua infância, e mocidade, e madureza
E velhice — e dentro de tudo
A tua voz sempre a justificar
Todos os teus atos, crimes e paixões
E outros milagres. Vai, ser de violência
E humilhação, vai, meu inseparável inimigo!
Vai que eu te aguardo, vai! Levas contigo
A minha maldição e o meu perdão.

CORTINA