Peças teatrais


Orfeu da Conceição

ORFEU DA CONCEIÇÃO
TRAGÉDIA CARIOCA EM TRÊS ATOS


                                   A
                                  Susana de Moraes,
                                  minha filha

 


                                   Now strike the golden lyre again:
                                  A louder yet, and yet a louder strain.
                                  Break his hands of sleep asunder,
                                  And rouse him, like a rattling peal of thunder.

                                  Hark, hark! the horrid sound Has raised up his head;
                                  As awaked from the dead,
                                  And amazed, he stares around.
                                  (John Dryden, “Ode in Honour of St. Cecilia’s Day”)

 


                                   [...] sin pan, sin música, cayendo
                                  en la soledad desquiciada

                                   donde Orfeo le deja apenas
                                  una guitarra para su alma
                                  una guitarra que se cubre
                                  de cintas y desgarraduras
                                  y canta encima de los pueblos
                                  como el ave de la pobreza.
                                   (Pablo Neruda, “La crema”)



O mito de Orfeu1

“Orfeu teve desgraçado fim. Depois da expedição à Cólquida, fixou-se na Trácia e ali uniu-se à bela ninfa Eurídice. Um dia, como fugisse Eurídice à perseguição amorosa do pastor Aristeu, não viu uma serpente oculta na espessura da relva, e por ela foi picada. Eurídice morreu em consequência, e desde então Orfeu procurou em vão consolar sua pena enchendo as montanhas da Trácia com os sons da lira que lhe dera Apolo. Mas nada podia mitigar-lhe a dor e a lembrança de Eurídice perseguia-o em todas as horas.

Não podendo viver sem ela, resolveu ir buscá-la nas sombrias paragens onde habitam os corações que não se enterneceram com os rogos humanos. Aos acentos melódicos de sua lira, os espectros dos que vivem sem luz acorreram para ouvi-lo, e o escutavam silenciosos como pássaros dentro da noite. As serpentes que formam a cabeleira das intratáveis Erínias deixaram de silvar e o Cérbero aquietou o abismo de suas três bocas. Abordando finalmente o inexorável Rei das Sombras, Orfeu dele obteve o favor de retornar com Eurídice ao Sol. Porém, seu rogo só foi atendido com a condição de que não olhasse para trás a ver se sua amada o seguia. Mas no justo instante em que iam ambos respirar o claro dia, a inquietude do amor perturbou o infeliz amante. Impaciente de ver Eurídice, Orfeu voltou-se, e com um só olhar que lhe dirigiu perdeu-a para sempre.

As Bacantes, ofendidas com a fidelidade de Orfeu à amada desaparecida, a quem ele busca perdido em soluços de saudades, e vendo-se desdenhadas, atiram-se contra ele numa noite santa e esquartejam o seu corpo. Mas as Musas, a quem o músico tão fielmente servira, recolheram seus despojos e os sepultaram ao pé do Olimpo. Sua cabeça e sua lira, que haviam sido atiradas ao rio, a correnteza jogou-as na praia da ilha de Lesbos, de onde foram piedosamente recolhidas e guardadas.”


Nota

Todas as personagens da tragédia devem ser normalmente representadas por atores da raça negra, não importando isto em que não possa ser, eventualmente, encenada com atores brancos.

Tratando-se de uma peça onde a gíria popular representa um papel muito importante, e como a linguagem do povo é extremamente mutável, em caso de representação deve ela ser adaptada às suas novas condições.

As letras dos sambas constantes da peça, com música de Antônio Carlos Jobim, são necessariamente as que devem ser usadas em cena, procurando-se sempre atualizar a ação o mais possível.


Personagens

Orfeu da Conceição, o músico Eurídice, sua amada

Clio, a mãe de Orfeu Apolo, o pai de Orfeu Aristeu, criador de abelhas

Mira de Tal, mulher do morro A Dama Negra

Plutão, presidente dos Maiorais do Inferno Prosérpina, sua rainha

O Cérbero Gente do morro

Os Maiorais do Inferno Coro e Corifeu

 

Ação

Um morro carioca

 

Tempo

O presente

 

Primeiro ato

CENA

O morro, a cavaleiro da cidade, cujas luzes brilham ao longe. Platô de terra com casario ao fundo, junto ao barranco, defendido, à esquerda, por pequena amurada de pedra, em semicírculo, da qual desce um lance de degraus. Noite de lua, estática, perfeita. No barraco de Orfeu, ao centro, bruxuleiam lamparinas. Ao levantar o pano, a cena é deserta. Depois de prolongado silêncio, começa-se a ouvir, distante, o som de um violão plangendo uma valsa2 que pouco a pouco se aproxima, num tocar divino, simples e direto como uma fala de amor. Surge o Corifeu.

CORIFEU
São demais os perigos desta vida
Para quem tem paixão, principalmente
Quando uma lua surge de repente
E se deixa no céu, como esquecida.
E se ao luar que atua desvairado
Vem se unir uma música qualquer
Aí então é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher.
Deve andar perto uma mulher que é feita
De música, luar e sentimento
E que a vida não quer, de tão perfeita.
Uma mulher que é como a própria Lua:
Tão linda que só espalha sofrimento
Tão cheia de pudor que vive nua.3

CLIO (de dentro, a voz estremunhada)
É o violão de Orfeu... Escuta, Apolo.

APOLO (também de dentro, bocejando)
Deixa-te estar, mulher...

CLIO
Acorda, homem! é o sangue do teu sangue
Que está tocando!

APOLO
          Então não sei? É boa!
Ninguém como mulher para ter língua
Para dizer as coisas... qual! Quem foi

Que pegou no menino e ensinou ele?
Quem teve a ideia? Quem pagou o dinheiro
Pelo melhor violão? um instrumento
T’esconjuro! que, às vezes, eu te juro
Clio, tocava com o roçar do vento...

CLIO
É mesmo. Foi você que ensinou ele…
Ele aprendeu, o meu Orfeu. Agora
Ninguém toca com ele, nem o mestre
Com quem ninguém tocava dantes. Ouve
Apolo, que beleza! que agonia!
Me dá uma vontade de chorar...

APOLO
Toca muito o meu filho, até parece
Não um homem, mas voz da natureza…
Se uma estrela falasse, assim dizia.
Escuta só. (dá risada) Até ofende a Deus
Tocar dessa maneira. Olha que acordes!
Quanta simplicidade! Sabes duma?
Me lembro dele quando, pequenino
Ficava engatinhando no terreiro
Nuzinho como Deus o fez: ficava
De boca aberta, resmungando coisa
Olhando as estrelinhas que acordavam
De tarde, pelo céu... Esse menino
Eu pensava, conversa com as estrelas…
Vai ver conversa mesmo.

CLIO
          Se conversa!
Mas fica quieto, peste. É até pecado
Ficar falando com Orfeu tocando.

                                   A música, em acordes, desenrola-se solta, cada vez mais próxima. Já agora ritmos de samba começam a marcá-la, aqui e ali, ritmos saudosos que enchem a noite. Às vezes chegam de longe sons, um cantar agudo de mulher, uma voz de homem que chama, pedaços soltos de um ensaio de batucada. Mas o violão cristalino predomina sempre. Num dado momento, a noite faz-se subitamente muito escura, como se uma nuvem espessa tivesse encoberto a Lua. Ao clarear a cena, Orfeu acha-se no topo da escada, o violão a tiracolo.

ORFEU
Toda a música é minha, eu sou Orfeu!

                                   Dá uma série de acordes e glissandos à medida que se aproxima da amurada. Vindas, ninguém sabe de onde, entram voando pombas brancas que logo se perdem na noite. Próximo uivam cães longamente. Um gato que surge vem esfregar-se nas pernas do músico. Vozes de animais e trepidações de folhas, como ao vento, vencem por um momento a melodia em pianíssimo que brota do violão mágico. Orfeu escuta, extático. Depois recomeça a tocar, enquanto, por sua vez, cessam os sons da natureza. Ficam nesse desafio por algum tempo, alternando vozes, até que tudo estanca, vozes, ruídos e música.

Eu sou Orfeu... Mas quem sou eu? Eurídice...

                                   Voltam por um momento os sons, os uivos de cães que se lamentam, o chilrear patético de pássaros nos ninhos. Depois a melodia do violão se retoma como um carinho.

Eurídice... Eurídice... Eurídice…
Nome que pede que se digam coisas
De amor: nome do meu amor, que o vento
Aprendeu para despetalar a flor
Nome da estrela sem nome... Eurídice...

                                   Tenta executar, em glissandos, o nome por que chama. Depois ri beatificamente, balançando a cabeça.

CLIO (de dentro)
Orfeu? Meu filho, és tu? Que estás fazendo?
Estás falando sozinho, filho meu?

ORFEU
Mãe, ainda não dormiu?

CLIO
Mas que pergunta!
Dormindo eu não estaria perguntando.
Onde está com a cabeça, Orfeu?

ORFEU (baixinho)
No céu.

                                   Ouve-se barulho dentro do barracão, e pouco depois surge Clio à porta. Fica parada, espiando o filho sem ser vista. Mais tarde aparece Apolo e os dois deixam-se estar, atentos aos menores gestos do tocador.

ORFEU (num sussurro)
Eurídice... Onde está você, Eurídice?

                                   Não para um segundo de tocar, como atendendo a uma música íntima. Mas de repente se volta, como sentindo-se observado.

ORFEU (a voz meio agastada)
Mãe? Pai? Que é isso? Já pra dentro!
Sair da cama quente com esse tempo
Frio... Não têm juízo?

CLIO
          Quem não tem
Juízo? O que pergunta ou o que responde?
O que quer dar um pouco do que é seu
Ou o que tinha juízo e que perdeu
E que nem sabe onde?

ORFEU (como para si mesmo)
          Sabe onde.
Sabe onde! Minha mãe, neste momento
O juízo de Orfeu tem outro nome
Um nome de mulher... Neste momento
O juízo de Orfeu canta baixinho
Um poema de Orfeu que não é seu:
É um nome de mulher... Neste momento
O juízo de Orfeu, todo de branco
Sobe o morro para encontrar Orfeu!

CLIO
          Meu filho
Que é isso? Onde está o meu Orfeu?
Estou te estranhando tanto...

APOLO
          Não te mete
Mulher, deixa o menino...

ORFEU
          Não, meu pai
Foi bom até puxar o assunto. Eu...

CLIO
Tu estás tocando muito hoje, meu filho…
Tu sempre tocas muito, eu sei; mas hoje
Teu violão entrou pelo meu sono
Como uma fala triste. Que é que há
Com você, filho meu, que tua mãe
Sabe e não quer saber, e que agonia
A negra velha?

ORFEU (carinhoso)
          Minha velha... (corre a beijá-la)
Mãezinha, como pode?...

CLIO
Uai, podendo!
Pois a gente não é de carne e osso
Não bota filho neste negro mundo
Não sofre, não capina, não se cansa
Não espreme o peito até dar leite e sangue
Não lava roupa até comer o sabugo (olha Apolo de lado)
Não sustenta um malandro, um coisa-ruim
Que só sabe contar muita garganta
E beber sem parar no botequim?
Pois a gente não é mãe, não cria um filho
Pra ser, como eu criei, absoluto
Pra ser o tal, querido e respeitado
Por homens e mulheres?

                                   Apolo olha Orfeu, levanta os ombros e interna-se no barracão. Ao emudecer sua mãe, o músico põe-se a tocar baixinho, em acordes nervosos.

ORFEU
          Ah, minha mãe
Minha mãe, que bobagem! e para que
Ofender o meu velho, homem tão bom
Quanto músico, ele que me ensinou
Tudo o que eu aprendi, da posição
À harmonia, e que se nada fez
É porque fez demais, fez poesia...

CLIO
Ah, que eu já estou muito chata desta vida
Tomara já morrer...

ORFEU
          Morrer sem ver
O filho de seu filho, que vai ser
O maioral dos maiorais?

CLIO (chegando-se a ele)
Que conversa esquisita é essa, meu filho?

ORFEU (pondo-lhe as mãos nos ombros)
Tão grande minha mãe, e ainda tão boba! (recomeça a tocar)
Minha mãezinha, eu quero me casar
Com Eurídice...

CLIO (a voz desesperada)
          Com Eurídice, meu filho?
Com Eurídice, nego? Mas... pra quê?

ORFEU (dedilhando docemente)
Eu gosto dela, minha mãe; é um gosto
Que não me sai nunca da boca, um gosto
Que sabe a tudo o que de bom já tive…
Aos seus beijos de mãe quando eu menino
À primeira canção que fiz, ao sonho
Que tive de chegar onde estou hoje…
Um gosto sem palavras, como só
A música pode saber...

                                   Dedilha o violão, como à procura da expressão que lhe falta.

          Minha mãe
Eu quero Eurídice e Eurídice me quer
Teu Orfeu, minha mãe, também é homem
Precisa uma mulher...

CLIO (embargada)
          Uma mulher?!
Qual a mulher que Orfeu não pode ter?
É só chamar... Meu filho, o morro é teu
É só você; desde sua mãe, que é tua
Até a última mulher... Pra que
Ir se amarrar, meu filho? Pensa um pouco
Você nasceu para ser livre, Orfeu!
Orfeu prisioneiro...

ORFEU
Você não entende, não; não sou mais eu
É ele, minha mãe... Orfeu é Eurídice
A música de Orfeu é como o vento
E a flor; sem a flor não há perfume
Há o vento sozinho, e é triste o vento
Sozinho, minha mãe...

CLIO
          Escuta, filho
Eu sei, tudo isso eu sei; minha conversa
É outra, Orfeu. Não é que eu seja contra
Você gostar de Eurídice, meu filho
Não tem mesmo mulata mais bonita
Nem melhor, neste morro — uma menina
Que faz gosto, de tão mimosa... mas
Pra quê? Eu te conheço bem, Orfeu
Eu que sou tua mãe, e não Eurídice
Mãe é que sabe, mãe é que aconselha
Mãe é que vê! e então eu não estou vendo
Que descalabro, filho, que desgraça
Esse teu casamento a três por dois
Tu com essa pinta, tu com essa viola
Tu com esse gosto por mulher, meu filho?
Ouve o que eu estou dizendo antes que seja
Tarde... Não que eu me importe... Mãe é feita
Mesmo para servir e pôr no lixo...
Mas toma tento, filho; não provoca
A desunião com uma união; você
Tem usado de todas as mulheres
Eu sei que a culpa disso não é só tua
O feitiço entra nelas com tua música
Mas de uma coisa eu sei, meu filho: não
Provoca o ciúme alheio; atenta, Orfeu
Não joga fora o prato em que comeste…
Você quer a menina? muito bem!
Fica com ela, filho... — mas não casa
Pelo amor de sua mãe. Pra que casar?
Quem casa é rico, filho; casa não!
Quem casa quer ter casa e ter sustento
Casamento de pobre é amigação
Junta só com a menina; casa não!

                                   Enquanto sua mãe fala, Orfeu não para um só instante de tocar, como se discutisse com ela em sua música, às vezes com a maior doçura, às vezes irritado ao extremo. Ao ver, no entanto, a face dolorosa com que Clio termina a sua exortação, corre a ela e abraça-a.

ORFEU
Minha velha!

CLIO (chorando)
Meu filho, casa não!

                                   Põe-lhe os braços sobre os ombros, trazendo-lhe a cabeça, e beija-o rudemente sobre a testa. Orfeu conserva-se assim por um instante, meio curvo. Ao recuperar-se novamente, está sozinho. Olha à toa, atônito. Seu violão, como perdido, responde ao estado de alma que o toma em acordes lancinantemente dissonantes. A frase musical correspondente ao nome de Eurídice reponta pungente em seu dedilhado agônico. Ele aproxima-se da amurada, voltado para as luzes da cidade. Uma lufada de vento traz sons como de harpa, que parecem enunciar o nome de Eurídice. Tudo é Eurídice na mecânica do instante, e a presença da mulher amada deve manter-se com uma força e fatalidade inenarráveis.

ORFEU
Eurídice! Eurídice! Eurídice!

                              O violão responde com três acordes semelhantes. Aos poucos, uma melodia parece repontar, com ritmos mais característicos, da massa informe de música que brota do instrumento. Orfeu, atento ao chamado, dedilha mais cuidadosamente certas frases. Aos poucos o samba começa a adquirir forma, enquanto a letra espontânea, a princípio soletrada, vai se adaptando à música.

ORFEU (cantando “Um nome de mulher”)
Um nome de mulher
Um nome só e nada mais…
E um homem que se preza
Em prantos se desfaz
E faz o que não quer

E perde a paz.
Eu por exemplo não sabia, ai, ai
O que era amar
Depois você me apareceu
E lá fui eu
E ainda vou mais...

                                   Repete a melodia algumas vezes, cantando entre dentes e fazendo uns passinhos de samba. Quando acaba, ri sozinho.

Eh! sambinha gostoso! estou te vendo
Descer o morro, meu samba... Ó turbilhão
De músicas em mim! Ih, já tem outra
Pronta para sair! Sossega, ideia!
Calma, violão! assim não adianta!
Vamos mais devagar... Deixa ver essa (dedilha)
Melodia... Frase para uma canção…
Uma canção a se chamar...

EURÍDICE (que já se achava presente havia algum tempo a observá-lo)
          ...Eurídice!

ORFEU
Foi você que falou, violão? ou foi
O nome dela no meu coração
Que eu disse sem saber?...

EURÍDICE
          Foi não, foi não!
Foi o amor mesmo que chegou, Orfeu!
Sou eu, neguinho...

ORFEU (voltando-se, dá com ela e recua como ofuscado)
          Eurídice! Visão!

EURÍDICE
Como passou o meu amor sem mim?
Pensou em mim? (suspira) Três horas e quarenta
Minutos sem olhar o meu amor
Ah! meu amor mais lindo...

                                   Correm um para o outro e se abraçam apaixonadamente.

Sofrimento!

ORFEU
Só sofrimento!

EURÍDICE
          Ouve o meu coração
Como bate, neguinho. Vim correndo...

ORFEU (põe-se a soluçar, a cabeça oculta no colo da amada)
Mulher, eu já nem sei o que me mata
Se é o amor que te tenho, tão maior
Que esse meu doido peito, ou se a vontade
Impossível de amar-te mais ainda. (afasta-se para olhá-la)
Ah, meu amor, como você é linda!

EURÍDICE
Só uma coisa no mundo é linda: Orfeu! (beija-o)

ORFEU
Alguém chora de bobo... não sou eu!

EURÍDICE (beijando-lhe os olhos)
Lágrimas do meu imenso amor, lágrimas
Tão puras... sobre a tua pele escura
Lembram estrelas de noite... deixa eu ver
Quero beber uma por uma as lágrimas
Me embriagar de estrelas...

ORFEU
Ah! neguinha Quanta saudade!

                                   Riem os dois, de mãos dadas, contemplando-se

          Eurídice, dizer
Que eu nasci antes de você nascer!
Como é que pode ser? o que é que eu era
Antes de Eurídice? um feixe grande de ossos?
Um bocado de carne e pele escura?
Dois pés e duas mãos? E o sentimento
A ideia, o que eram? Nada! O nascimento
De Orfeu foi quando Eurídice nasceu!

EURÍDICE
Doçura do meu peito! fala mansa
Que toda me arrepia! desgraçado
Que me matas de gosto! tentação!
Ah, não me fala assim tão doce não
Ainda não, ainda não, senão Eurídice
Vai ser tua antes de ser...

ORFEU (tomando-a nos braços)
          Paixão!
Paixão que me alucina e me dá vida!
Mulher do meu amor aparecida
Eu te quero pra mim!

EURÍDICE
          Ainda não!
Por favor, meu amor, um segundinho
Só; daqui dois dias nos casamos
Como se combinou; já está tratado
O casamento e tudo; já cosi
Meu vestido de noiva, comprei véu…
Vamos fazer assim como Deus quer
Não é mesmo?

ORFEU (abraçando-a violentamente)
          Paixão, paixão, paixão
Paixão por ti, mulher!

                                   Beijam-se num embate irresistível, enquanto novamente o céu escurece como se uma nuvem ocultasse a lua. Sons como vozes informes parecem vir do vento, em meio dos quais repontam subitamente os gemidos agoniados de Eurídice.

EURÍDICE (a voz embargada)
Não, meu neguinho. Pelo amor de Deus
Ainda não! ainda não!

                                   A luz da lua volta a iluminar a cena. Orfeu desembaraça-se lentamente do abraço da namorada.

ORFEU
          Perdão, Eurídice
Se é que é possível o amor pedir perdão.
Dois dias mais... é tanto tempo, Eurídice (muda de tom)
Tá bem. Faço das tripas coração
Morro de amor, tá bom?... porque a morena
Não me quer...

EURÍDICE (num gemido)
Peste, demônio, coisa ruim! me mata
Mas não me fala assim...

ORFEU
          Minha adorada
Eu estou brincando, bem-querer...

EURÍDICE
                              Desculpa
A culpa é minha, eu sei...

ORFEU
          Ninguém tem culpa
Minha neguinha... é só amor — mais nada...

EURÍDICE (suspirando fundo)
Poxa! estou com a cabeça revirada...

                                   Riem gostosamente. Depois novamente se abraçam, mas desta vez com infinita ternura.

ORFEU (berçando a namorada)
O meu amor tão bom... Meu bem... Meu bem...

EURÍDICE
Diz que mulher tem alma de gato. Tem.

          Riem mais, abraçados. Depois Eurídice desenlaça-se.

ORFEU
Já, neguinha?

EURÍDICE
É preciso, meu amor…
Preciso dar uma chegada em casa
Ver mamãe.

ORFEU
          Vê se volta, por favor…
Tenho um sambinha novo pra mostrar
E quem sabe se até você voltar
Não sai outro...

EURÍDICE (dirigindo-se ao violão)
          Me diga... sai, violão?

                                   Orfeu dedilha o instrumento à solta.

ORFEU
Ele disse que faz o que você manda
Meu coração.


EURÍDICE (benzendo-se)
          Cruz-credo! até parece
Que essa viola fala de verdade…
Vai ver fala de fato.

                              Orfeu, brincando, exprime coisas que lhe quer dizer, coisas súplices que fazem a namorada rir.

Até, neguinho.
Volto num instante.

                                   De repente retorna o vento, e os rumores estranhos da noite. O violão toca agitado por alguns instantes enquanto Eurídice se afasta.

ORFEU (num grito)
Eurídice!

EURÍDICE (voltando-se assustada)
          Que foi, Orfeu? alguma
Coisa, meu bem-querer?

ORFEU
          Não sei. Me deu
De repente uma coisa, uma agonia
Uma vontade de te ver...

                                   A cena clareia de modo fantástico, como se a intensidade do luar tivesse aumentado sobrenaturalmente.

          Querida!
Não vai não!

EURÍDICE
          Meu neguinho, que bobagem!
É um instantinho só. Volto com a aragem...

ORFEU
Por que você está assim, filhinha?
O que é que você tem?

EURÍDICE
          É a lua, coração.
É a luz da lua, não é nada não.

ORFEU
Ai, que agonia que você me deu
Meu amor! que impressão, que pesadelo!
Como se eu te estivesse vendo morta
Longe como uma morta...

EURÍDICE (chegando-se a ele)
          Morta eu estou.
Morta de amor, eu estou; morta e enterrada
Com cruz por cima e tudo!

ORFEU (sorrindo)
          Namorada
Vai bem depressa. Deus te leve. Aqui
Ficam os meus restos a esperar por ti
Que dás vida!

                                   Eurídice atira-lhe um beijo e sai.

Mulher mais adorada!
Agora que não estás, deixa que rompa
O meu peito em soluços! Te enrustiste
Em minha vida; e cada hora que passa
É mais por que te amar, a hora derrama
O seu óleo de amor, em mim, amada…
E sabes de uma coisa? cada vez
Que o sofrimento vem, essa saudade
De estar perto, se longe, ou estar mais perto
Se perto — que é que eu sei! essa agonia
De viver fraco, o peito extravasado
O mel correndo; essa incapacidade
De me sentir mais eu, Orfeu; tudo isso
Que é bem capaz de confundir o espírito
De um homem —, nada disso tem importância
Quando tu chegas com essa charla antiga
Esse contentamento, essa harmonia
Esse corpo! e me dizes essas coisas
Que me dão essa força, essa coragem
Esse orgulho de rei. Ah, minha Eurídice
Meu verso, meu silêncio, minha música!
Nunca fujas de mim! sem ti sou nada
Sou coisa sem razão, jogada, sou
Pedra rolada. Orfeu menos Eurídice…
Coisa incompreensível! A existência
Sem ti é como olhar para um relógio
Só com o ponteiro dos minutos. Tu
És a hora, és o que dá sentido
E direção ao tempo, minha amiga
Mais querida! Qual mãe, qual pai, qual nada!
A beleza da vida és tu, amada
Milhões amada! Ah! criatura! quem
Poderia pensar que Orfeu: Orfeu
Cujo violão é a vida da cidade
E cuja fala, como o vento à flor
Despetala as mulheres — que ele, Orfeu
Ficasse assim rendido aos teus encantos!
Mulata, pele escura, dente branco
Vai teu caminho que eu vou te seguindo
No pensamento e aqui me deixo rente
Quando voltares, pela lua cheia
Para os braços sem fim do teu amigo!
Vai, tua vida, pássaro contente
Vai, tua vida, que estarei contigo!

                              Às últimas linhas o violão de Orfeu já começa a afirmar uma nova melodia, que o músico retoma. O samba se vai pouco a pouco revelando, enquanto a letra se forma naturalmente, ao sabor do ensaio. Orfeu canta “Se todos fossem iguais a você”.

Vai tua vida
Teu caminho é de paz e amor
A tua vida
É uma linda canção de amor
Abre os teus braços e canta a última esperança
A esperança divina
De amar em paz…

Se todos fossem iguais a você
Que maravilha viver!
Uma canção pelo ar
Uma mulher a cantar
Uma cidade a cantar
A sorrir, a cantar, a pedir
A beleza de amar…
Como o sol, como a flor, como a luz
Amar sem mentir nem sofrer
Existiria a verdade
Verdade que ninguém vê
Se todos fossem no mundo iguais a você!

                                   Às últimas linhas, entra Mira.

MIRA
Tá bom, deixa... Sambinha novo, Orfeu?

ORFEU (olhando-a casualmente)
É. Samba novo. Como vai? Adeus.

MIRA
Ah, gostei muito da recepção…
Antes não tinha disso não, violão.

ORFEU
É. Boa noite. Vê se eu estou na esquina.
Se eu não estiver vem logo me contar.
Não me encontrando, eu estou em algum lugar.

MIRA (mudando de tom)
Que é isso, coração? me desprezando?
Antigamente ocê era diferente…
Me lembro um samba teu chamado “Mira”:
Se lembra?

ORFEU
Desse lado de cá não escuto nada
De tanto que escutei conversa fiada.
Joga pro alto!

MIRA
          Te manca aí, benzinho
Se fosse outra pessoa que falasse
Você escutava direitinho...

ORFEU
          Some!
Sacode o lombo, vira fada, voa!

MIRA
Tu com essas partes todas, coisa à toa
Não faz um ano andava me pegando…
Se esqueceu?

ORFEU
          Me esqueci. Ora essa é boa!
Que é que há pra lembrar que eu não lembro?
Sou esquecido, esquecido...

MIRA
          Talvez você precise
De alguém para refrescar sua memória
Alguma suja, alguma descarada
Alguma vagabunda sem-vergonha
Alguma mulatinha de pedreira
Metida a branca!

ORFEU (voltando-se furioso)
          Mete o pé, ferida
Senão eu te arrebento de pancada
A boca carcomida!

MIRA (enfrentando-o)
          É? Arrebenta
Se ocê é homem!

ORFEU (chegando-se a ela)
Vai-te embora, mulher, enquanto é tempo
Não me põe louco! faz o que eu te digo!

MIRA (rindo sarcástica)
Bancando o seu abob’ra... Nem te ligo…
Quem sabe até não quer me convidar
Para madrinha?

ORFEU (como para si mesmo)
          Que é isso, Orfeu…
Muita calminha…
Calma, homem, calma...

MIRA (olhando-o com desprezo)
          É. Vou buscar
O calmante, tá bom? Dizer que isso
Já foi o tal! Que é que te deu, Orfeu
Te puseram feitiço?

ORFEU
          Vai levando…
Desaparece, Mira! Estou querendo
É paz, é muita paz. Não me chateia
Pelo amor de sua mãe, some!

MIRA (cuspindo)
          Ferida!
Ferida és tu, seu mal-agradecido
Desprezar essa negra que te deu
Tudo o que tinha, tudo!

ORFEU
          Calma, Orfeu
Muita calma...

MIRA
          Vendido! Porcaria!
Filho duma cadela! Vai pro mato
Pegar a tua Eurídice!

                                   A essas palavras Orfeu avança sobre ela e agride-a a bofetadas. A mulher reage e os dois lutam violentamente por um instante. Numa separação momentânea, Mira, atemorizada, recua.

CLIO (de dentro, a voz assustada)
Orfeu? Orfeu?

                                   Orfeu se retoma e por um momento deixa-se estar na mesma posição, ofegante, enquanto a mulher, apavorada, foge lentamente de costas, até desaparecer numa carreira.

ORFEU (a voz alterada)
Pode dormir quietinha, mãe. Sou eu.

CLIO (no entressono)
Não fica muito tempo nesse frio
Meu filho, vem dormir.

ORFEU
          Já vou, mãezinha.

                                   Pega no violão e põe-se a tocar agitadamente. Depois vai serenando, em acordes que aos poucos se vão fazendo mais e mais alegres. Por fim o ritmo do samba já reponta. Dá uma sonora gargalhada.

Mulher... ah, mulher!

                                   O instrumento parece repetir a frase. Orfeu assovia. Depois o samba começa a aparecer. Orfeu canta “Mulher, sempre mulher”.

Mulher, ai, ai, mulher
Sempre mulher dê no que der
Você me abraça, me beija, me xinga
Me bota mandinga
Depois faz a briga
Só pra ver quebrar!
Mulher, seja leal
Você bota muita banca
E infelizmente eu não sou jornal.

Mulher, martírio meu
O nosso amor
Deu no que deu
E sendo assim não insista, desista
Vá fazendo a pista
Chore um bocadinho
E se esqueça de mim.

                                   Ri gostosa, sonoramente. Enquanto a sua risada se prolonga, chegam, novamente, informes, os ruídos da natureza, misteriosos como falas. A cena escurece como anteriormente. Orfeu, olhando em torno, sai lentamente de cena, repetindo seu samba ao violão. Passados alguns segundos, entra soturno Aristeu.

ARISTEU
Eu me chamo Aristeu, pastor de abelhas
Mas não há mel bastante neste mundo
Para adoçar a minha negra mágoa…
Aristeu, Aristeu, por que nasceste
Para morrer assim, cada segundo
Desse teu negro amor sem esperança?
Ah, Eurídice, criança! que destino
Cruel pôs-te, fatal, no meu caminho
Com teu corpo, teus olhos, teu sorriso
E tua indiferença? Ah, negra inveja
De Orfeu! Ah, música de Orfeu! Ah, coração
Meu, negro favo crepitando abelhas
A destilarem o negro mel do crime!
Orfeu, meu irmão, por quê? por que teu vulto
Em forma de punhal no meu caminho?
Por que te fez tão belo a natureza
Para não a Aristeu, amar-te Eurídice?
Por que razão te dizes meu amigo
Orfeu, se praticaste a crueldade
De seres como és, e sendo Orfeu
Seres mais bem-amado? Ah, desgraçado
Aristeu, pobre vendedor de mel
Do mel de Orfeu! Tu, Orfeu, deste a colmeia
Que um dia, entre as abelhas, de repente
Abriu na cera ao ninho da serpente
Que há de picar Eurídice no seio:
Negro seio que nunca há de dar leite...

                                   No final do monólogo entra Mira que, escondida, deixa-se a observar Aristeu.

MIRA
Não é verdade, Aristeu: o seio negro
De Eurídice, daqui mais nove meses
Estará escorrendo leite branco
Para o filho de Orfeu! Eu sei, Aristeu
Eu sei porque eu ouvi!

ARISTEU (voltando-se)
          Quem está aí?

MIRA (aparecendo)
Eu, Mira.

ARISTEU (voltando-se possesso)
          Mentira! É uma mentira! (agarra-a)
Fala, mulher!

MIRA
          Se você me sufoca
Assim, como é que eu vou poder falar?

ARISTEU
Então cala!

MIRA
          Isso não! Vou te contar
Tudo o que ouvi Orfeu dizer a Eurídice
E Eurídice a Orfeu... Não banca o otário
Aristeu!

                                   Põe-se a sussurrar-lhe ao ouvido, depois olha em torno. Afastam-se rapidamente. Poucos segundos depois, aparece Orfeu acompanhando no violão um choro que se executa no morro. A lua ilumina a cena. Mas de súbito tudo escurece, como anteriormente. Orfeu estaca e para de tocar. Logo, do fundo da sombra, cresce uma voz soturna, enorme, como ecoando numa câmara de eco.

A DAMA NEGRA
O homem nasce da mulher e tem
Vida breve. No meio do caminho
Morre o homem nascido da mulher
Que morre para que o homem tenha vida.
A vida é curta, o amor é curto. Só
A morte é que é comprida...

ORFEU
Quem falou?

                                   A cena clareia, enquanto surge da escada, lenta, uma gigantesca negra velha, esquálida, envolta até os pés num manto branco, e trazendo nas mãos um ramo de rosas vermelhas.

A DAMA NEGRA
Sou eu, Orfeu; a Dama Negra!

ORFEU (as mãos sobre os olhos, como ofuscado)
Quem sois vós? Quem sois vós, senhora Dama?

A DAMA NEGRA
Eu sou a Dama Negra. Não me chamo.
Vivo na escuridão. Vim porque ouvi
Alguém que me chamava.

ORFEU
          Não chamou!
Ninguém chamou aqui!

A DAMA NEGRA
          Chamou, Orfeu
E eu vim.

ORFEU
          Não veio! Aqui quem manda é Orfeu!
Mando eu!

A DAMA NEGRA
Hoje alguém me chamou que vai comigo
Para o fundo da noite vai comigo
Alguém me chamou.

ORFEU
          Não chamou!
Este é meu reino, aqui quem manda é Orfeu
Digo que não chamou!

A DAMA NEGRA
          O mundo é meu
Orfeu, o mundo é meu. Tenho um instante
Para ficar, Orfeu. Depois, Orfeu
Tenho que ir adiante...

ORFEU
          Vá embora
Senhora Dama! eu lhe digo: vá embora!
No morro manda Orfeu! Orfeu é a vida
No morro ninguém morre antes da hora!
Agora o morro é vida, o morro é Orfeu
É a música de Orfeu! Nada no morro
Existe sem Orfeu e a sua viola!
Cada homem no morro e sua mulher
Vivem só porque Orfeu os faz viver
Com sua música! Eu sou a harmonia
E a paz, e o castigo! Eu sou Orfeu
O músico!

A DAMA NEGRA
          Orfeu, eu sou a Paz.
Não sou de briga, Orfeu...

ORFEU
          Orfeu é forte!
Vá embora, senhora Dama!

A DAMA NEGRA
          Não.
Alguém chamou. Aqui esperarei.

ORFEU
Orfeu é muito forte! Orfeu é rei!
Vá embora, senhora!

                                   Põe-se a tocar furiosamente em seu violão, em ritmos e batidas violentos. Os sons, à medida que se avolumam, vão criando uma impressão formidável de magia negra, de macumba, de bruxedo.

E vá dançando!

                                   A Dama Negra, ao ritmo que se desenvolve cada vez mais rapidamente, põe-se a dançar passos de macumba, a princípio lenta, depois vertiginosamente, na progressão da música.

Dança, senhora Dama! Dança! Dança!

                                   O movimento segue assim, num crescendo infinito, até que, exausto, Orfeu para, com macabro e demoníaco som do violão. A cena escurece totalmente. Quando clareia, vê-se Eurídice no mesmo lugar onde se achava a Dama Negra, também com um ramo de rosas na mão.

EURÍDICE
Orfeu! Querido! Que é que aconteceu?

ORFEU (olha-a como se não a reconhecesse)
Eurídice? Que sonho tive eu
Minha Eurídice!

EURÍDICE (corre até ele)
          'Tado do meu neguinho!
Eu demorei demais. Também mamãe
Não queria que eu viesse, deu conselho:
Menina, toma tento! espera um pouco
Sossega com esse fogo, se resguarda
Patati-patatá. E eu conversando
Ela, dizendo que era só um instante
Que eu só queria te dizer boa-noite.
Desculpa, meu amor...

ORFEU
          Minha adorada
Perto de ti não penso mais em nada
Foi um sonho, passou...

EURÍDICE
          Fez algum samba?

ORFEU
Fiz dois.

EURÍDICE
          Fez algum para mim, Orfeu?

ORFEU
Tudo o que sai do violão é teu
Mulher...

EURÍDICE
          Que mais aconteceu?

ORFEU
Nada. Mira veio me ver. Me provocou
Quase dou-lhe na cara uma pregada.

EURÍDICE (rindo)
Bobo! Brigando à toa! Ciumada...

ORFEU
É. Perdoa a bobagem...

EURÍDICE (beijando-o)
Perdoada.

                                   Orfeu prende-a num beijo e os dois amorosos se enlaçam estreitamente, enquanto volta o vento e com o vento os sons misteriosos da noite. Mas eles nada percebem, entregues à força da sua paixão.

ORFEU
Mulher, não me maltrata assim, malvada
Não me maltrata assim...

EURÍDICE (abandonada)
          Neguinho
Neguinho meu!

ORFEU
          Ô que paixão danada!
Ô que paixão ruim!

                                   Enlaça-a pela cintura.

          Minha adorada
Por quê?

EURÍDICE
Meu bem...

ORFEU
          Por quê? Por quê?

EURÍDICE
Quer a sua morena tanto assim?

ORFEU (a voz estrangulada)
Não é nem mais querer... é coisa ruim
É morte!

EURÍDICE (pensativa)
          Morte? Morrer... E se eu morresse?
Você ia sentir muito? Ou ficava
Quem sabe, até bastante aliviado?

ORFEU (num soluço)
Cala a boca, querida! Se eu
Te perdesse eu iria te buscar
Fosse no Inferno, tanto que te quero!

EURÍDICE
Acaso pensa que eu também não quero?

ORFEU
E então, por quê, meu bem?

EURÍDICE
          Você me quer?

ORFEU
Nada no mundo eu quero mais, mulher
Amor de minha vida...

EURÍDICE (brincalhona)
          Mas depois
Não vai cansar de mim?

ORFEU
Depois, vai ser só um — nunca mais dois:
Eurídice e Orfeu.

EURÍDICE
          Querido, escuta…
Mas onde?

ORFEU
          No barracão de Orfeu.
Na cama que Orfeu tinha preparado
Para a mulher que Deus lhe deu.

EURÍDICE
          E os outros
E sua mãe, seu pai?

ORFEU
          Tudo arrumado.
Tenho lá meu quartinho separado.
A cama é um pouco dura, sonho meu...

EURÍDICE
Hoje Eurídice é cama para Orfeu.

                                   Beijam-se de novo, ternamente, e entram juntos no barraco. À sua entrada a noite se faz imensamente clara e pássaros noturnos chilreiam invisíveis, enquanto melodias parecem vir da voz do vento. Mas logo surge de trás de um dos barracos o vulto de um negro alto e esguio, que se esgueira sorrateiramente e se vem plantar, num gesto dramático, em frente à casa dos dois amantes. Coincidindo com o seu gesto, e com uma nova música, patética, que vem dos ruídos da noite, a Dama Negra surge da sombra.

ARISTEU (a voz soluçante)
Eurídice!

A DAMA NEGRA
          Eurídice morreu.

ARISTEU
Quem falou? Quem falou?

A DAMA NEGRA
          Eu, Aristeu!
A Dama Negra, Aristeu...

ARISTEU (num grito selvagem)
          Eurídice!

A DAMA NEGRA
Tarde vieste, Aristeu. A tua Eurídice
A tua Eurídice morreu! Naquela casa
Entre os braços do homem que a perdeu
Entre os braços de Orfeu, a tua Eurídice
A tua Eurídice morreu, Aristeu!

ARISTEU
          Não, não morreu!
Está viva! Morrerá do braço meu!
Quero o seu sangue!

A DAMA NEGRA
          Ela morreu, Aristeu!
Dentro daquela casa, a tua Eurídice
Tudo o que tinha deu a seu Orfeu
Aristeu!

ARISTEU
          Cala-te! Ela ainda não morreu!
Está viva, eu é que vou matar, sou eu!
Ou minha ou de ninguém!

A DAMA NEGRA
          Qual, Aristeu…
Tudo o que a tua Eurídice guardava
Já entregou a Orfeu.

                                   Aristeu, como um louco, investe para a casa, brandindo os punhos. Nesse momento ouvem-se as vozes confusas dos dois amantes e ambos, Aristeu e a Dama Negra, recolhem-se furtivamente à sombra. A porta se entreabre para deixar passar Eurídice. Orfeu surge, a meio-corpo, apenas, entre os umbrais. Beijam-se demoradamente.

EURÍDICE
Boa noite, meu amor.

ORFEU
          Boa noite, amiga.

EURÍDICE
Como o corpo meu que foi teu, também
Meu pensamento está contigo!

ORFEU
          Doce bem…
Pensa em mim, pensa bastante em mim!

EURÍDICE (beijando-o)
          Meu
Homem! Meu adorado!

ORFEU
          Todo teu
Todo teu, todo teu, o corpo, a alma
E a música de Orfeu!

EURÍDICE
          Ah, que saudade!

ORFEU
Nem me fales, mulher, (beija-a) amor de Orfeu!

EURÍDICE
Dor mais gostosa só morrer no céu…
Meu homem!

ORFEU
          Meu amor!

EURÍDICE
Meu doce Orfeu!
Boa noite, preciso ir...

ORFEU
          Leva contigo
O meu amor...

EURÍDICE
          Contigo fica o sangue
Do meu amor: amor, adeus...

ORFEU
Vai em paz, meu amor, toma cuidado
Pelo caminho! (olha a noite) A lua foi amiga
Não foi, amiga?

EURÍDICE (beijando-o)
          Foi, amigo. Adeus!

ORFEU (beija-a)
Adeus!

                                   Entra. Ao voltar-se Eurídice, Aristeu, surgindo do escuro, um punhal na mão, mata-a espetacularmente. Eurídice cai.

EURÍDICE (ao morrer)
          Adeus.

ARISTEU (fugindo embuçado)
          Adeus, mulher de Orfeu!

                                   A cena vai escurecendo lentamente, enquanto a Dama Negra surge do canto onde se ocultara. Tudo é silêncio. Com um gesto largo a Dama Negra tira o grande manto que a veste e cobre com ele o corpo de Eurídice morta enquanto cai o pano.

 

 

Segundo ato

CENA

No interior do clube Os Maiorais do Inferno, num fim de baile de terça-feira gorda. Cenário e ambiente característicos do nome, com grande margem para a sugestão de um balé, sem prejuízo, no entanto, do equilíbrio clássico que deve ser mantido no decorrer da ação. Pares e indivíduos isolados dançam pelo salão sem música, entre as sombras rubro-negras de refletores a insinuar a presença do fogo. Todas as figuras secundárias, homens e mulheres, vestem-se com o uniforme da sociedade carnavalesca, sendo que no caso destas últimas a indumentária faz lembrar vivamente Eurídice. Como nas orgias gregas, os homens perseguem as damas, que aceitam e refugam, ao sabor do movimento. Bebe-se fartamente, com unção, na boca das garrafas. Num trono diabólico, ao fundo, sentam-se Plutão e Prosérpina, com uma corte de mulheres à volta. Esse casal mefistofélico deve se caracterizar pelo tamanho e gordura, gente gigantesca, risonha, desperdiçada, a aproximar comparsas solitários, a gritar, a beber, insinuando, criando a festa.

PLUTÃO (às gargalhadas, em tom altíssimo sugerindo o samba negro)
Aproveita, minha gente, que amanhã não tem mais! Hoje é o último dia! Aproveitem, meus filhos, que amanhã é Cinzas! Não quero ninguém triste, não quero ninguém sozinho, não quero ninguém a seco! Encham a cara que a morte é certa! Amanhã é Cinzas, hoje é alegria, o último dia da alegria! Afinal de contas, quem é que manda aqui?

PROSÉRPINA (vivando)
É o rei, é o rei!

TODOS (em coro)
É o rei, é o rei!

PLUTÃO
Quem dá bebida dá alegria dá samba dá orgia?

TODOS (marcando o compasso)
É o rei, é o rei!

PLUTÃO (erguendo-se em toda a estatura)
Quem é o rei?

TODOS (aplaudindo vivamente)
É O REI! É O REI!

                                   Dispersam-se como doidos, a marcar o tempo com palmas e sapateados, enquanto dançam ao sabor da frase, sempre repetida: “É o rei! é o rei!” Plutão e Prosérpina riem-se de morrer. A seus pés as mulheres riem-se também, a se rolar sensualmente.

PLUTÃO (no mesmo tom agudo)
Triste de quem não quer brincar, que fica a labutar ou a pensar o dia inteiro! Triste de quem leva a vida a sério, acaba num cemitério, trabalhando de coveiro!

TODOS (em coro, marcando o compasso)
Acaba num cemitério, trabalhando de coveiro!

PROSÉRPINA (bêbada, erguendo-se)
E viva a orgia! É o reinado da folia! É hoje o último dia! E viva!

TODOS
E viva!

PLUTÃO
Quem é que marca o tempo, meus filhos?

TODOS
É o bumbo!

                                   Ouve-se o som monstruosamente ampliado de um bumbo.

PLUTÃO
Quem é que marca o ritmo?

TODOS
É o tamborim!

                                   O mesmo, com um tamborim.

PLUTÃO
Quem é que marca a cadência?

TODOS
É o pandeiro!

                                   O mesmo, com um pandeiro.

PLUTÃO
Quem é que faz a marcação?

TODOS
É a cuíca!

                                   O mesmo, com uma cuíca.

PLUTÃO
Quem é que anima a brincadeira?

TODOS
É o agogô!

                                   O mesmo, com um agogô.

PLUTÃO
Então, o que é que faz a batucada?

TODOS
É o bumbo é o tamborim é o pandeiro é a cuíca é o agogô!

PLUTÃO
Então como é como é como é? Sai ou não sai esse samba?

                                   Ouve-se o apito. Depois o primeiro e em seguida o segundo e terceiro tamborins. Logo entra a cuíca, num crescendo.

PLUTÃO (altíssimo, superando a marcação)
É o samba ou não é?

TODOS
É!

PLUTÃO
É gostoso ou não é?

TODOS
É!

PLUTÃO
É do diabo ou não é?

TODOS
É!

                                   O som atinge proporções fabulosas, enquanto todo mundo se põe a dançar, batendo com os pés a marcação. Plutão e Prosérpina dançam também, sobre o estrado, entre as mulheres que rolam bêbadas. A cena conserva-se, assim, por um tempo razoavelmente grande. De repente insinua-se, a princípio longínquo, depois numa amplitude cada vez maior, a dominar a batucada, o som cristalino de um violão que plange. Uma após outra, todas as figuras vão se imobilizando nas posturas originais do samba, e o som do batuque decresce, à medida que o das cordas aumenta. Só Plutão se ergue, como atônito, e se inclina para ouvir. O instrumento corre escalas dulcíssimas, em trêmulos e glissandos que se aproximam mais e mais. De vez em quando, em meio à música, uma voz chama. É a voz de Orfeu.

A VOZ DE ORFEU (longuissimamente)
Eurídice!

                                   Cada vez que a voz chama, cria-se um silêncio provisório do violão. Esses chamados alternam-se com a expressão carinhosa da música, da qual participa frequentemente a frase musical correspondente ao nome da mulher amada. Em breve as mulheres apenas, não os homens, vão saindo do letargo em que se achavam e como desabrochando da imobilidade.

A VOZ DE ORFEU
Eurídice! Eurídice!
                                   À medida que o nome vai sendo repetido, as mulheres renascem totalmente, dando lugar então a que se ouça um prenúncio de coro, coisa fragílima, espécie de sussurro ou frêmito vocal, como uma crepitação de vento, repetido dissonantemente pelas mulheres, em escalas sucessivas, até desaparecer, de tão tênue. Esse eco coral desdobra o patético do nome que a voz de Orfeu trouxe de longe.

A VOZ DE ORFEU
Eurídice!

CORO DAS MULHERES
Eurídice... rídice... ídice... dice... ice... ce... ce... eee...

A VOZ DE ORFEU (tristíssima)
Eurídice...

CORO DAS MULHERES
Eurídice... rídice... ídice... dice... ce...

A VOZ DE ORFEU
Mulata...

CORO DAS MULHERES
Ai... ai... ai... ai... ai... ai... ai...

PLUTÃO (erguendo-se arrebatadamente)
Continua a festa! Continua a festa!

                                   A essas palavras imperativas as mulheres se imobilizam, enquanto os homens começam a despertar. Insinua-se, em meio ao som do violão, o toque da batucada.

PLUTÃO (bradando)
Alegria! É o reinado da alegria! Amanhã é Cinzas! Hoje é o último dia! E viva Momo! E viva a folia!...

 

PLANO DE CÉRBERO

Vê-se Orfeu que vem, tocando seu violão, uma grande expressão de mágoa estampada no rosto. Ele busca Eurídice em meio à loucura do Carnaval. Dirige-se para o clube dos Maiorais do Inferno, onde se processa, infernalmente, a batucada. Mas, súbito, vê seu caminho barrado pelo Cérbero, o leão de chácara do clube, o grande cão de muitos braços e muitas cabeças, que investe contra ele ameaçadoramente, e só não o trucida porque Orfeu não para de tocar sua música divina, que o perturba. Quando o Cérbero avança, Orfeu recua, sempre tocando, e ante a música é o Cérbero que, por sua vez, recua, sem saber o que faça. Pouco a pouco a música de Orfeu domina o Cérbero, que acaba por vir estirar-se a seus pés, apaziguado.

A batucada prossegue em crescendo, dominando aos poucos os sons do violão. Assim permanece por alguns instantes. De repente, ouve-se um brado desesperado, um grito inarticulado, como de horror. Deve ser tão sobre-humanamente alto e súbito que o seu efeito seria o de traumatizar completamente a assistência.

ORFEU
Eurídice!

                                   Logo após esse grito aumentam os reflexos vermelhos do fogo, e em seguida faz-se a escuridão. Uma luz branca projeta-se sobre a porta de entrada, onde surge Orfeu, que para no limiar. Vem todo de branco, o violão a tiracolo. Ali se deixa extático, por um tempo suficientemente grande para que se realize no espaço o silêncio evocado por aquele monstruoso grito. Ao soar seu violão, acendem-se as luzes e o músico ingressa na sala. Toca um choro triste, ao som do qual dançam as mulheres, somente elas, em passos lânguidos, isoladamente. Orfeu passeia pela sala, e durante esse passeio as mulheres o requestam com os gestos de sua dança.

PLUTÃO (pondo-se de pé, num brado)
Quem sois tu?

ORFEU (parando de tocar, enquanto se imobilizam as mulheres)
Eu sou Orfeu, o músico.

PLUTÃO (brandindo o punho)
Em nome do Diabo, responde: quem sois tu?

ORFEU
Eu sou a mágoa, eu sou a tristeza, eu sou a maior tristeza do mundo! Eu sou eu, eu sou Orfeu!

PLUTÃO
O que queres?

PROSÉRPINA (atirando-se nos seus braços, bêbada, a buscar-lhe a atenção)
Ele quer é rosetar! Deixa ele, bem. Olha para mim!

PLUTÃO
Silêncio, mulher! Plutão está falando, Plutão, o Rei dos Infernos! Não quero ouvir nem o voar de uma mosca! Silêncio! (dirigindo-se a Orfeu) O que queres?

ORFEU
Eu quero a morte!

PLUTÃO
Para de fazer gracinha! Diz de uma vez: quem sois tu, e o que queres?

ORFEU
Eu quero Eurídice!

                                   A esse nome as mulheres recomeçam em sua dança lânguida, enquanto murmuram.

AS MULHERES
Eu quero a vida, ninguém me dá vida, Carnaval acabou, a vida morreu, acabou-se a vida, a vida sou eu, a vida morreu...

PLUTÃO
Em nome do Diabo, diz o que queres, homem!

ORFEU (a voz grave e patética)
Eu quero Eurídice!

AS MULHERES (dançando)
Eu sou Eurídice. Eurídice sou eu. Quem foi que disse que eu não sou Eurídice? Quem foi que disse que eu não sou Eurídice? Quem foi que disse que eu não sou Eurídice?

ORFEU (num gemido do violão)
Eurídice, querida. Vem comigo!

                                   Estende os braços para as mulheres, como a solicitá-las. Elas vêm, deixando-se namorar e desvencilham-se ao sabor do movimento.

PLUTÃO
Ninguém sai daqui sem ordem do rei! Pra fora, penetra! Maiorais do Inferno: ponham o penetra pra fora! Pra fora! Ninguém quer arigó aqui!

                                   Os rumores da batucada começam novamente a se acender. Os homens se movimentam, aproximando-se em passos medidos, ameaçadores. Mas Orfeu domina-os com a magia de seu violão. O movimento estaca por completo.

ORFEU
Não sou daqui, sou do morro. Sou o músico do morro. No morro sou conhecido — sou a vida do morro. Eurídice morreu. Desci à cidade para buscar Eurídice, a mulher do meu coração. Há muitos dias busco Eurídice. Todo mundo canta, todo mundo bebe: ninguém sabe onde Eurídice está. Eu quero Eurídice, a minha noiva morta, a que morreu por amor de mim. Sem Eurídice não posso viver. Sem Eurídice não há Orfeu, não há música, não há nada. O morro parou, tudo se esqueceu. O que resta de vida é a esperança de Orfeu ver Eurídice, de ver Eurídice nem que seja pela última vez!

PLUTÃO
Pra fora! Aqui não tem Eurídice nenhuma. Tás querendo é me acabar com o baile, pilantra? Aqui mando eu! Pra fora, já disse!

PROSÉRPINA (caindo bêbada sobre ele)
O cara tá é cheio. Deixa ele, bem, senão é capaz de sair estrago. Vem cá, dá um beijinho.

PLUTÃO
Espera, mulher! Como é que pode? Como é que pode tocar a festa? Precisa pôr o homem na rua! Não tás vendo que o homem tá de malícia?

AS MULHERES (em coro)
Eu sou Eurídice...

ORFEU (movimenta-se de uma para outra)
Vem comigo! Mulata, vem comigo! Sem você não há vida, não há música, não há nada. Vem comigo! Vem conversar comigo como dantes! Vem deitar na minha cama como dantes!

AS MULHERES (dançando)
Quem foi que disse que eu não sou Eurídice? Quem foi que disse que eu não sou Eurídice?

PLUTÃO (a voz aguda)
Ninguém sai daqui sem ordem do rei! Aqui é o rei quem manda! Toca a música! Onde está a música? Cadê o bumbo o tamborim a cuíca o pandeiro o agogô? Toca o apito! Começa o samba! Não acabou o Carnaval ainda não!

PROSÉRPINA
Não resolve... O homem tá de cara cheia. Deixa ele. (ri histericamente) Dor de cotovelo tá comendo solta! Dor de cotovelo tá comendo solta, minha gente!

ORFEU (estonteado)
Onde estou eu? Quem sou eu? Que é que vim fazer aqui? Como é que foi? Isso é o Inferno e eu quero o Céu! Eu quero a minha Eurídice! a minha mulata linda, coberta de sangue... Eu quero a minha Eurídice, que brincava comigo, a minha mulata do dente branco...

                                   As mulheres o rodeiam, dando-se as mãos. A batucada recomeça, baixinho, entre vozes e risadas perdidas. Estão todos bêbados, largados. Alguns homens correm, tontos, atrás de umas poucas mulheres que bailam à solta.

AS MULHERES (acompanhando o bumbo e a cuíca em ritmo de marcha)
Ciranda, cirandinha
Vamos todos cirandar
Já bateu a meia-noite
Carnaval vai acabar.

ORFEU (os braços para o alto)
Não, não morreu!

AS MULHERES
Tinha uma, tinha duas
Tinha três, tinha um milhão
Tanta mulher não cabia
Dentro do seu coração.

ORFEU
A minha Eurídice...

AS MULHERES
Vamos, maninha, vamos
Na praia passear
Vamos ver o casamento
Ó maninha
Que acabou de celebrar.

ORFEU
Eu e Eurídice...

AS MULHERES
Vamos, maninha, vamos
Na praia passear
Vamos ver a noiva bela
Ó maninha
E a marcha nupcial.

ORFEU
Aonde? Aonde?

                                   Plutão e Prosérpina riem e se abraçam, já meio dormindo.

AS MULHERES
O anel que tu me deste
Era vidro e se quebrou...

ORFEU (que se pôs a beber de uma garrafa, exaltado)
Não! Era o maior amor do mundo! Era a vida, era a estrela, era o céu! Era o maior amor do mundo, maior que o céu, maior que a morte! Eurídice, querida, acorda e vem comigo...

AS MULHERES
Nessa rua, nessa rua tem um bosque
Que se chama, que se chama solidão...

ORFEU (clamando)
Eurídice, vem comigo!

                                   As libações continuam, gerais. Vários casais já dormem pelo chão. Alguns ainda dançam sambas caprichados, sem música. Um casal de malandros dança um em frente ao outro, jogando capoeira.

AS MULHERES (pegando-se pelas mãos, e fazendo-se trocar os lugares, a cada linha. Os dois malandros continuam a capoeira)
Os escravos de Jó
Gostavam de brigar
Vira, mata, pega o zamberê
Que dá!

Guerreiro com guerreiro     \
Zip-zip-zip-zá                     / bis
 

                                   Orfeu corre de uma mulher para outra, tentando separá-las. Mas o movimento sempre o repele. Ele bebe avidamente. Por aí então já todos dormem, com exceção das mulheres que cantam e dos dois malandros que dançam a capoeira, um em frente ao outro, à direita.

ORFEU (brandindo a garrafa)
Eu sou o escravo da morte! Eu sou aquele que procura a morte! A morte é Eurídice! Vem comigo, morte...

                                   Requesta as mulheres, mas estas se desvencilham. Orfeu pega o violão e dedilha. Por um momento os sons dulcíssimos dominam tudo e o movimento cessa totalmente, até que as mulheres, fascinadas, começam a seguir Orfeu em passadas lânguidas, medidas, enquanto o músico se afasta de costas, em direção à porta de saída. Mas quase no momento de sair, incutem, entre os acordes do violão, os ritmos pesados, soturnos, da batucada. Os dois sons coincidem por alguns instantes, enquanto as mulheres, indecisas, fluem e refluem ao sabor dos dois ritmos.

ORFEU (para as mulheres, apontando-as)
Vem, Eurídice. Eu te encontrei. Eurídice é você, é você, é você! Tudo é Eurídice. Todas as mulheres são Eurídice. Quem é que quer mulher morta? Eu não quero mulher morta! Eu quero Eurídice, viva como na noite do nosso amor. Vem, minha vida...

                                   A aurora raia, pouco a pouco, entre as sombras rubras. Orfeu, voltado para fora, exclama.

É a madrugada, Eurídice. Lembra, querida, quantas madrugadas eu vi nascer no morro ao lado teu? Lembra, Eurídice, dos passarinhos que vinham aceitar o desafio do violão de Orfeu? Lembra do sol raiando sobre o nosso amor? (ergue os braços para a aurora) Eurídice, tu és a madrugada! A noite passou, a escuridão passou. Espera, minha Eurídice! Eu vou, me espera...

                                   Vai saindo, tocando o seu violão, entre os acordes da batucada em pianíssimo. As mulheres correm atrás dele, mas o ritmo presente as prende mais. A cada movimento para a frente respondem com um refluxo geral, lânguido, dentro do tempo do samba.

ORFEU (bem longe)
É a madrugada, Eurídice...

AS MULHERES (em coro, dançando, cantam sem palavras, com sons em surdina que aumentam como violinos)
Hum... m... m... m...
                                   A cena se conserva assim, as mulheres dançando languidamente, os dois malandros lutando capoeira, à direita da sala, que se faz mais e mais clara. Ouve-se sempre a voz de Orfeu e seu violão, muito longe, em meio ao toque em pianíssimo da batucada. Depois cai lentamente o pano.

 

 

Terceiro ato

CENA

A mesma do primeiro ato. Crepúsculo. Em frente ao barracão de Orfeu veem-se agrupamentos de pessoas que conversam ad lib, em tom grave, atentas aos acessos de choro e, por vezes, gritos animais de dor que provêm de Clio no interior da casa. Entra o Coro.

CORO

PRIMEIRA VOZ
Ai, Orfeu...

SEGUNDA VOZ
          Pobre Orfeu...

TERCEIRA VOZ
          Orfeu tão puro...

QUARTA VOZ
Tão puro que de amor enlouqueceu...

QUINTA VOZ
Creio em Orfeu...

SEXTA VOZ
          Criador de melodia...

PRIMEIRA VOZ
          Orfeu, filho de Apolo...

SEGUNDA VOZ
Nosso Orfeu!

TERCEIRA VOZ
          Nasceu de Clio...

QUARTA VOZ
          E muito padeceu
Sob o poder maior da poesia...

QUINTA VOZ
E foi pela paixão crucificado...

SEXTA VOZ
E ficou louco e abandonado...

CORO (em uníssono)
Desceu às trevas, e das grandes trevas ressurgiu à luz, e subiu ao morro onde está vagando como alma penada procurando Eurídice...

CLIO (possessa)
Ah, maldita! maldita! Que fizeste
Com o meu filho?...

APOLO (aflito, de dentro)
          Sossega, coração.
Tem calma, Clio, pelo amor de Deus…
Olha os vizinhos, minha nega.

CLIO (aos berros)
          Vaca!
Prostituta! Cadela! Vagabunda!
Nasce de novo que é pra eu te comer
Os olhos! Sem-vergonha! Descarada!
Nasce de novo, nasce!

APOLO
          Minha filha
Minha filha, tem calma...

CLIO (em prantos)
          Vai embora!
Sai de perto de mim! Quero o meu filho!
Onde está meu Orfeu?

APOLO
          Está por aí
Quietinho que parece uma criança.
A doideira de Orfeu, mulher, é mansa...

                                   Ouve-se um estertor de Clio.

CLIO
Não, é mentira! Doido o meu Orfeu?
Ah, Deus do céu! Me leva bem depressa
Que é pra eu encontrar aquela negra
Que endoideceu o meu Orfeu! Me leva
Deus... (muda de tom) Não, não quero mais saber de Deus!
Que Deus é esse que apagou assim
O espírito de Orfeu? Não quero Deus!
Deus de mentira, Deus de inveja, Deus...

          Uma crise de pranto a interrompe.

UM HOMEM (fora)
Credo! Que horror!

UMA MULHER (benzendo-se)
          Virgem Nossa Senhora!
Pobre dessa mulher!

UMA SEGUNDA MULHER
          Alguém devia
Fazer alguma coisa...

UMA TERCEIRA MULHER
          É, é preciso
Chamar um médico...

UM SEGUNDO HOMEM
          É? Tem cada uma…
Médico, aqui no morro...

                                   Dirige-se em tom zombeteiro a um outro homem.

          Eh, você…
Pega no Cadillac e chama o médico.

O OUTRO HOMEM (sério)
Acho-te uma gracinha...

O SEGUNDO HOMEM
          Uai, por quê?
Foi a mulher que mandou...

A MULHER
          Deus me defenda!
Nem se respeita mais a dor alheia.
Quando Orfeu tava bom não era assim
Esse morro era feliz.

UM VELHO (balançando a cabeça)
          Ah, isso era!
Com Orfeu esse morro era outra coisa.
Havia paz. A música de Orfeu
Tinha um poder a bem dizer divino...

UM OUTRO VELHO
É mesmo. E endoideceu. Pobre menino...

                                   Dentro do barracão recrudesce o choro de Clio. Do lance de degraus, surgem algumas mulheres com latas d’água na cabeça, que se misturam aos circunstantes a comentar a cena ad lib. Apolo surge à porta.

APOLO
Não sei mais o que faça. São três dias
Desse martírio... Minha pobre velha!
Assim ela endoidece igual ao filho...

CLIO (de dentro)
Ah, quem me traz o meu Orfeu de volta
Ah, quem me traz...

APOLO
          Meu Deus, que coisa horrível!
Por que é que nesse mundo não tem paz?
Por que tanta paixão?

CLIO (chorando)
          Não posso mais!
Me matem, por favor...

APOLO (aos circunstantes)
          Vocês aí…
Por favor, minha gente... — qualquer coisa…
Pela estima que tinham ao meu Orfeu
Me façam qualquer coisa...

                                   Entra enxugando lágrimas. Comentários ad lib.

UMA MULHER
          Que tragédia!
Nem eu não posso mais. Isso há três dias!
Essa mulher não aguenta. É necessário
Que vá alguém lá embaixo ver se traz
Um socorro qualquer...

UM HOMEM
          Uma ambulância!
Tem o posto da praça. Eu dou um pulo.

UMA VELHA
Vai depressa, meu filho. E Deus te guie.

                                   O homem desce correndo. Por um momento faz-se um grande silêncio no grupo.

UMA MULHER
E Orfeu, onde andará?

UMA OUTRA MULHER
          Anda vagando.
Passa os dias doidando pelo morro…
Meu filho ainda outro dia topou ele
Diz que é impressionante. Ocês conhecem
Meu garoto, não é? Não é medroso.
Pois bem: voltou tão impressionado
Que foi preciso fazer reza nele
Pra passar...

                                   Faz-se um círculo à sua volta. Comentários ad lib.

UMA TERCEIRA MULHER
          Ih, menina!

UMA QUARTA MULHER
          Como foi?

A PRIMEIRA MULHER
Foi assim: meu garoto vinha vindo
Da banca de engraxate (vocês sabem
Como ele, de levado, sobe o morro
Lá pela ribanceira...). Muito bem.
Vinha assim vindo. Estava escurecendo
Quando ele entrou na mata. De repente
Vê uma aparição! Esfrega os olhos:
Não, era Orfeu! Orfeu todo de branco
Como anda sempre, violão no peito
Braços abertos, boca com um sorriso
Como esperando alguém, alguém que veio
Porque ele olha pro lado de repente
Abre os braços assim e sai correndo
Vai embora. Meu filho segue ele
Mas Orfeu se escondeu quem sabe onde…
Pobrezinho. Tal qual alma penada…
Talvez pior, que está penando em vida!

                                   Comentários ad lib.

A SEGUNDA MULHER
E nunca mais ninguém ouviu um som
Sair do violão...

A TERCEIRA MULHER
          É. Não tá certo.
Desandou tudo nesse morro. Tudo.
Quanta briga, meu Deus, que tem saído
Quanta gente mudando pra outros morros
Foi mau-olhado, foi...

A QUARTA MULHER
          Cala essa boca!
Não chama mais desgraça, criatura
Eu por mim vou-me embora. Aqui não fico.

                                   Comentários ad lib.

A PRIMEIRA MULHER
E Mira, ocê já viu? Tá doida, Mira…
Doida varrida, Mira... Diz que fica
Lá na Tendinha, Mira e mais aquelas
Outras rameiras que tem lá por cima
Fazendo toda a sorte de estrupício
Dizendo cada nome e enchendo a cara
Fazendo bruxaria noite adentro
E falando que foi por causa dela
Que Aristeu, o criador de abelhas
Esfaqueou Eurídice, e que Orfeu
Está maluco assim por causa dela
Não por causa de Eurídice... Ora veja!
Ninguém não quer passar mais lá por perto…
E com toda a razão. Eh, mundo louco!

UM HOMEM
E lembrar desse morro há uma semana…
Nem parecia um morro da cidade!
Uma calma, um prazer, uma harmonia
Quanto samba de Orfeu de boca em boca
Quanta festa com Orfeu sempre presente
Quanta falta de briga...

                                   Comentários ad lib.

UM OUTRO HOMEM
          Eu que o diga!...
Foi Orfeu quem mudou a minha vida
Devo o que sou a ele. Antigamente
Era só valentia, briga à toa
Té que ele veio e conversou comigo.
Orfeu não era um homem, era um anjo…
Agora digam: vale a pena?... Qual!
Mulher é perdição...

UMA OUTRA MULHER
E não faltava nada pra ninguém.
Qualquer necessidade, não sei como
Orfeu sabia e logo aparecia
Um dinheirinho — tudo samba dele…
Uma tristeza em casa? uma quizília?
Ele vinha, mexia, se virava
Sapecava um sambinha de improviso
Brincava... Um anjo! Tinha pés de santo...

                                   Uma mulher põe-se a chorar e sai correndo da cena.

A SEGUNDA MULHER
Tadinha. Era tarada por Orfeu.
Foi namorada dele antes de Eurídice
Nunca mais esqueceu...

                                   Ouve-se distante a sirene de uma ambulância que pouco depois cessa. Logo em seguida entram os ruídos longínquos de um batuque batido sobre caixas e latas. Esses ruídos devem se aproximar progressivamente durante as cenas que seguem.

A PRIMEIRA MULHER
É a ambulância!

                                   Corre ao barracão e grita da porta.

Eh, seu Apolo. Eu acho que é a ambulância...

APOLO (aparecendo à porta)
Coitada. Tá que é um trapo. Mas não dorme.
Choro sempre correndo do olho aberto
A mão no coração.

A PRIMEIRA MULHER
          Avisa ela
Que é pra depois não dar alteração...

APOLO
Obrigado.

                                   Entra. O som do batuque que sobe faz-se cada vez mais próximo. Surge, esfalfado, o homem que desceu para chamar a ambulância, acompanhado de um outro. Trazem com eles uma maca.

O HOMEM
          Tá pronto, minha gente!
Trouxe a maca. A ambulância está embaixo
Que caras mais folgados... Adivinha
O que disse o doutor?... “Vocês são fortes
Subam e tragam a mulher que eu espero embaixo
E depressa que eu tenho um caso urgente
Me esperando...”

UM OUTRO HOMEM
          Essa sopa vai acabar...

                                   Ouve-se dentro do barracão um grito desesperado de Clio.

CLIO
Não! Eu não quero ir! Me deixem em paz!
Eu quero o meu Orfeu! Cadê meu filho?
Onde está ele? Apolo, eu quero ele!

APOLO
Tá bem, minha filha. Fica sossegada.
Foi Orfeu quem mandou buscar você
Tá te esperando. Vem.

CLIO
          Mentira tua!
Isso é mentira tua! Ah, Deus do céu
Por que sofrer assim?

APOLO (surgindo à porta)
          Vocês aí...
Me ajudem por favor...

                                   Dois homens adiantam-se e entram no barracão. Ouvem-se de início murmúrios, depois berros seguidos de ruídos de luta e coisas quebradas. Em seguida Clio surge à porta esfrangalhada. Seu aspecto é terrível.

CLIO
          Por caridade!
Não me levem daqui! Ah, não me levem
De junto de meu filho. Eu quero ele
Doido mesmo, é meu filho, é meu Orfeu
Por caridade, vão buscar meu filho
Vocês sabem, Orfeu da Conceição
Sujeito grande, violão no peito
Tá sempre por aí... Vocês conhecem
É o meu Orfeu... Dizem que endoideceu
Mas é mentira, eu sei. Orfeu é músico
Sua música é vida. Sem Orfeu
Não há vida. Orfeu é a sentinela
Do morro, é a paz do morro, Orfeu. Sem ele
Não há paz, não há nada, só o que há
É uma mãe desgraçada, uma mãe triste
Com o coração em sangue. E tudo isso
Por causa de uma suja descarada
Uma negrinha que nem graça tinha
Uma mulher que não valia nada! (subitamente possessa)
Descarada! Ah, nasce de novo, nasce
Pra eu te plantar as unhas nessa cara
Pra eu te arrancar os olhos com esses dedos
Pra eu te cobrir o corpo de facada! (muda de repente de tom)
Não, ela não morreu! Meu Deus, não deixa!
Eu quero ela pra mim, eu quero Eurídice
Só um instantinho eu quero ela pra mim!
Eu juro que depois fico boazinha
Prometo, Deus do céu! Não quero nada
Só quero que me levem à cova dela
Que é pra eu cavar dentro daquela terra
Desenterrar o corpo da rameira
Ver ela podre, toda desmanchada
Cheia de bicho...

APOLO (corre para ela)
Chega, Clio! Chega!

CLIO (sacudindo-o longe)
Ah, chega! Ah, chega! Até você, Apolo
Defendendo a rameira...

                                   Voa contra ele tentando agatanhá-lo. Vários homens correm em socorro de Apolo e dominam Clio. Ela luta furiosamente até que, exausta, se abate.

APOLO
          Pronto. Agora
Ponham ela na maca. E vamo’ embora.

                                   Nesse momento entra em cena o pessoal do batuque, cujo ritmo deve vir se aproximando ao longo das cenas anteriores. É um grupo de meninos engraxates, e batem com as escovas em suas caixas e latas. Não dão muita atenção ao que se passa e vão se acomodar a um canto, sem parar de bater, enquanto os circunstantes arrumam Clio na maca.

UM MENINO (cantando)
Paz, muita paz!
Paz, muita paz!
Que falta nesse mundo que ela faz, rapaz...

SEGUNDO MENINO (que parece o chefe do bando)
Não, essa não! Vamos cantar aquela
Outra de Orfeu, aquela que ele deu
Pra mim...

TERCEIRO MENINO
Você enche com esse teu sambinha...

SEGUNDO MENINO
Tás aí pra isso, tás? Vá! Taca peito.

                                   O batuque entra, os meninos batendo nas caixas, enquanto o outro grupo começa a se movimentar, acompanhando a maca que transporta Clio. Ao mesmo tempo se inicia em voz baixa, que à medida vai crescendo, uma salve-rainha rezada pelas mulheres. Aos poucos, com a progressão da reza, as pessoas que restam começam a se ajoelhar, enquanto a oração prossegue em meio ao batuque e às imprecações distantes de Clio. Os meninos cantam “Eu e o meu amor”.

OS MENINOS
Eu e o meu amor
E o meu amor…

Que foi-se embora
Me deixando tanta dor
Tanta tristeza
No meu pobre coração
Que até jurou
Não me deixar
E foi-se embora
Para nunca mais voltar…
Lá-rá-rá-rá-lá              \
Lá-rá-ri-lá-rá-rá-rá      / bis

                                    Repetem o samba cada vez com mais gosto, ao sabor do batuque. A reza prossegue, enquanto alguns homens e mulheres remanescentes saem com ar triste. De longe chegam gritos bêbados de mulheres, gargalhadas perdidas, ecos melancólicos de uma orgia a se processar em algum lugar no morro. A noite cai rapidamente. Ao se acenderem as luzes da cidade ao longe, a cena escurece, surgindo, logo após, o plano da Tendinha.

 

PLANO DA TENDINHA

Um pequeno bosque no alto do morro, de árvores esparsas, solitárias. Noite de lua cheia. Um barracão com uma tabuleta: “Tendinha”. Ruído de conversas e gargalhadas de homens e mulheres no interior, com trechos ocasionais do samba anterior cantados agudamente. Algumas mulheres bêbadas saem para o terreiro em frente, entre as quais Mira.

MIRA (trocando as pernas, subitamente explode)
Para esse samba, para esse negócio
Senão eu corto os cornos dum!

                                   O samba, no interior da Tendinha, continua. Mira põe as mãos nos ouvidos e de repente investe, porta adentro, e faz parar o samba, em meio à agitação geral.

UMA MULHER (bêbada)
          Que folga!
Que é que tu tás pensando aí, hein Mira?
Manera, Mira... (aos circunstantes) Vamos com esse samba
Pessoal! Tem umas caras que não quer
Mas tem outras que quer... Então, que é isso?
Quem é que manda aqui: é homem ou Mira?

MIRA
Vai-te, tu sabes muito bem pra onde…
Põe banca não, perua, que eu te manjo...
Tu não dás nem pra saída.

A MULHER (desdenhosa)
Tirei de letra... Vai encher outro, Mira...
Se tu fosses mulher como eu, Orfeu
Não te largava igual que te largou
Pior que um pano de cozinha. (ri histérica) Eu, não!
Orfeu ficou comigo uma semana:
Eu, a bacana!

MIRA (as mãos nos quadris)
          Tu? Muito bacana…
Bacana como casca de banana...
Bacana como fundo de bueiro...
Bacana como a sola do meu pé...
Assim é que tu é: muito bacana!

A MULHER (ameaçadora)
Te guenta, Mira...

MIRA (fazendo dois passos para ela)
Guenta você, mulher!

                                   Investe sobre ela e as duas se atracam. Logo acorrem homens e mulheres da Tendinha, que as separam.

A MULHER (debatendo-se)
Deixa essa cara vir, deixa ela vir...
Vem, Mira! Pode vir!

MIRA (soltando-se dos que a seguram)
Dá até pra rir...

                                   Os circunstantes carregam a mulher e algumas companheiras de Mira cercam-na. Dentro em pouco, o ambiente dentro da Tendinha parece se ter restabelecido e logo se ouve um novo samba, seguido de cantos e gargalhadas gerais.

TODOS (em coro cantam “Lamento do morro”)
Não posso esquecer
O teu olhar
Longe dos olhos meus...
Ai, o meu viver
É te esperar
Pra te dizer adeus...
Mulher amada!
Destino meu!
É madrugada
Sereno dos meus olhos já correu...

UMA MULHER
Deixa isso pra lá, Mira...

MIRA
          É. Não tem nada...
Eu quero é encher a cara!

OUTRA MULHER
Tou nessa, hein Mira...

O HOMEM
Com’é, Mira? Eles tão te reclamando...
Seja legal e vem fazer as pazes…
Vamos beber e cantar samba, Mira
Que a morte é certa...

MIRA (subitamente grave)
É mesmo. A morte é certa...
É a única coisa certa nesse mundo.

                                   Volta-se e subitamente corre para a Tendinha, seguida das outras. Em breve, os ruídos, as conversas, as exclamações indicam que as duas mulheres fizeram as pazes e o ambiente de farra se retomou. Logo depois, alguém começa a tocar um chorinho macio ao cavaquinho. Ato contínuo, entra em cena Orfeu. Vem cauteloso, por entre as árvores, olhando para o alto com um ar perdido. Traz o violão consigo.

ORFEU (a voz surda, como a pedir silêncio)
Ainda é cedo demais, amiga. A lua
Está dando de mamar pras estrelinhas...
Toma o teu tempo. Quando for a hora
Desce do céu, amor, toda de branco
Como a lua. O mundo é todo leite
Leite da lua, e a lua és tu, Eurídice…
Chega de leve pelo espaço; desce
Por um fio de luz da lua cheia
Vem, ilusão serena, coisa mansa
Vem com teus braços abraçar o mundo
O mundo que sou eu, que não sou nada
Sem Eurídice... Vem. Baixa de manso
Surge, desponta, desencanta, explode
Como uma flor-da-noite, minha amada...
Aqui ninguém nos vê. Esses que gritam
Não veem, não sabem ver. São todos cegos.
Cego só não sou eu que te respiro
Em cada aroma e te sinto em cada aragem
Cego só não sou eu que te descubro
Em cada coisa e te ouço em cada ruído
Cego só não sou eu que te recebo
Do mais fundo da noite, ó minha amiga
Minha amiga sem fim! quanto silêncio
Nos teus passos noturnos desfolhando
Estrelas! que milagre de poesia
Em tua ausência só minha! quanta música
Nesse teu longo despertar na treva!
Ah, deixa-me gozar toda a beleza
Do momento anterior à tua vinda...
Espera ainda, espera, que o segredo
O segredo de tudo está no instante
Que te precede quando vens. Escuta
Amada... Onde é que estás que não te vejo
Ainda? e sinto já na noite alta
O tato de teus seios? Onde pousas
Anjo fiel, com tuas asas brancas
A fremir sobre as copas? Ah, sim, te vejo
Agora... Estás ali... Por que tão triste
Minha Eurídice? Quem magoou a minha Eurídice?
Não, não fiques assim... Por que não falas?
Meu amor, me responde! Minha Eurídice
Banhada em sangue?! Não!

                                   Nesse momento chega um homem à porta da Tendinha e logo depois aparece Mira. Vem muito bêbada e meio descomposta. Um grupo de mulheres no mesmo estado a acompanha, assim como uns poucos homens; mas estes, à vista de Orfeu, retraem-se com respeito.

MIRA (alto, mostrando Orfeu)
          É este o cara
De quem tavam falando?

UM HOMEM (segurando Mira pelo braço)
          Deixa ele
Mira...

                                   Mira desvencilha-se dele com um sacolejão. Em vista disso o homem dá de ombros, faz um sinal aos outros e vão saindo todos devagar.

UM SEGUNDO HOMEM
Bom, minha gente, vam’a vida. É hora
De pegar uma boa berçolina.
Vam’bora, pessoal...

UM TERCEIRO HOMEM
          Vam’embora, Mira.
Deixa o homem em paz! (saem)

MIRA
          Deixa o homem em paz... Tá boa...
Tá assim por minha causa... louco, louco...

UMA MULHER (em tom zombeteiro)
Ah, é? Passa amanhã....

UMA SEGUNDA MULHER (em tom mais zombeteiro ainda)
É mesmo, Mira?

                                   As duas caem na gargalhada, logo acompanhadas pelas outras. À base dessas brincadeiras, as mulheres, bêbadas, dão-se trancos, dançam passos de samba e brincam de capoeira. Mas o ambiente é tenso e ameaçador.

MIRA (furiosa)
Ah, ninguém me acredita... Suas negras!
Pois já vão ver...

                                   Chega-se a Orfeu e sacode-o brutalmente. O músico, que desde o início da cena não parecera dar pelas mulheres, sai do seu transe e olha Mira. A mulher sacode-o, depois num gesto arrebatado colhe-o pela cabeça e beija-o sobre a boca. Em meio a esse beijo, Orfeu, desperto, atira-a longe. Mira rola por cima das outras, e algumas caem.

ORFEU (alucinado)
          Pra fora, suas cadelas!
Pra fora, senão eu...

                                   Suspende o punho fechado ameaçadoramente, mas em meio ao gesto parece novamente perder-se. Olha para o alto, atônito, e depois chama baixinho.

ORFEU
Visão... Visão...

                                   As mulheres, como possessas, açuladas por Mira, atiram-se sobre ele, com facas e navalhas. Como um Laocoonte, Orfeu luta para desvencilhar-se da penca humana que o massacra. Depois, conseguindo libertar-se por um momento, foge coberto de sangue, com as mulheres no seu encalço.

 

PLANO FINAL

O local do barracão de Orfeu. Tudo vazio. Luar intenso.

ORFEU (chega correndo, coberto de sangue)
Eurídice! Eurídice! Eurídice! (cai)

                                   A Dama Negra surge da sombra.

A DAMA NEGRA (falando com a voz de Eurídice)
Aqui estou, meu Orfeu. Mais um segundo
E tu serás eternamente meu.

ORFEU (prostrado)
Me leva, meu amor...

                                    As mulheres entram correndo, esfarrapadas e cobertas de sangue, como fúrias. Ao verem Orfeu caído, precipitam-se sobre ele e cortam-no louca, selvagemente. Depois dessa carnificina, Mira levanta-se de entre as outras mulheres. Traz na mão o violão de Orfeu. Num ímpeto, arremessa-o longe, por cima da amurada. Ouve-se bater o instrumento, num som monstruoso. Mas logo depois uma música trêmula incute, misteriosa e incerta. Apavoradas, as mulheres fogem. A Dama Negra aproxima-se do corpo, envolve-o com seu longo manto, enquanto a música de Orfeu se afirma, límpida e pura. A figura da Dama Negra cobrindo o cadáver de Orfeu com seu manto pouco a pouco esvanece. Entra o Coro.

CORO

Juntaram-se a Mulher, a Morte, a Lua
Para matar Orfeu, com tanta sorte
Que mataram Orfeu, a alma da rua
Orfeu, o generoso, Orfeu, o forte.
Porém as três não sabem de uma coisa:
Para matar Orfeu não basta a Morte.
Tudo morre que nasce e que viveu
Só não morre no mundo a voz de Orfeu.

 

CORTINA

 

 

Notas

1  Excerto de La leyenda dorada de los dioses y de los héroes, da autoria do helenista Mario Meunier.

2  Nesta peça deverá ser tocada, obrigatoriamente, a valsa “Eurídice” de minha autoria.

3  Estes versos foram musicados por Toquinho durante a década de 1970.