Crônicas de Cinema


Orson Welles no Brasil

Orson Welles vem ao Brasil. Convenhamos que o fato se re- veste da maior importância para os apaixonados do Cinema. Welles é sangue novo, sangue produzido espontaneamente da revolta de um organismo que não se quis deixar morrer e voltou a se vitaminar em bons frutos, de sumo ácido.
É preciso confiar em Welles. Tudo o que há de perigoso neste homem, na sua arte, na sua violência, na sua crítica, no seu desmando, é necessário à cultura de um novo cinema que nasce. O velho cinema, desvirtuado na sua técnica pela infiltração do mercantilismo, que a colocou a serviço de um patrimônio estúpido de sentimentos burgueses, azedou, sem embargo da boa massa do fundo que hoje já não alimenta senão a saudade de alguns fãs mais tolerantes.
Mas isso não satisfaz ninguém. O que é preciso é não ter saudade, mesmo saudosos, para que se empreste ao presente a energia da nossa confiança. Welles aí está, impuro, man- chado de astúcia, de fraude muitas vezes, um aventureiro le- gítimo. Mas há nesse aventureiro um ideal tão grande, uma humanidade tão vasta, uma violência tão autêntica, que ao mundo não ferem as suas cabotinadas, as suas perfídias, as suas amoralidades. Welles vem para criar, assim o grita o seu Cidadão Kane, assim o afirma o interesse com que Chaplin o buscou, vem para chocar o preconceito da burguesia com o seu destabocamento, para escandalizar e entusiasmar, e para errar ele também na sua luta por um mundo genuíno. É o que revelam sua personagem irritantemente antiburguesa e a sua técnica vária, múltipla, igual à vida, como ela cheia de estados opostos, de harmonias e desarmonias, de contrastes chocantes, mas onde nascem, crescem e morrem, em sinceri- dade, sentimentos verdadeiros.
Ninguém anda mais em busca de arte, nem de crítica. De arte está o mundo cheio, dessa arte artística de contornos exatos e estética determinada, que se faz sem sofrimento e com uma simplicidade que se erigiu em criação, quando a simplicidade é o que devia ser, mas naturalmente, sem es- forço. No entanto, o que se vê por aí é uma simplicidade de propósito, arrumada à custa de vaidade e de talento.
Isso nos traz o grande Orson Welles. Traz-nos uma natu- reza persuasiva, que não se vexa da própria sordidez e sabe se comprazer no espetáculo da grandeza e da miséria da vida. Esperemos que sua vinda ao Brasil nos deixe o que há de realmente permanente na sua força.

1941