Prosa dispersa


A bolerização

A BOLERIZAÇÃO

 

Se é verdade que o Brasil está com a tendência a perder a sua velha posição de primeiro país produtor de café no mundo, em compensação está caminhando rápido para conquistar a dianteira como país produtor de boleros.

A bolerização, como diria Machado de Assis, é geral. Abre-se o rádio e lá vem o nostálgico ritmo-de-bacia (bacia pélvica, bem entendido...) que para mim, que já tenho andado muito por essas Américas, não me é estranho: lembro-me de tê-lo ouvido muito no México, por exemplo, de onde não sei se é oriundo, mas onde tem privilégios certos de nacionalidade.

Não haja dúvida, os ritmos ouvidos são do melhor bolero: tristezas mil nos bares do Brasil; grandes d.d.c. no mais puro estilo Kostelanetz, com centenas de violinos mofinos comendo soltos Au clair de lune; tara muito; um certo ar de maconha oculto por eclipse — enfim, a narrativa constante do lado mórbido desses grandes e constantes entreveros que há entre homem e mulher. E os músicos brasileiros vão “metendo los pechos”, porque, evidentemente, o negócio deve estar rendendo.

Mas a verdade, se me permitem um aparte, é que estão xaviercugando a música

popular brasileira.

Será isso uma das muitas formas de escapismo de uma sociedade doente e entediada a essa realidade saudável e dionisíaca que é sempre a marca da boa música popular? Evidentemente. A música com saúde passou a constituir um elemento “Onésimo” no ambiente escuro e enfumaçado das boates pequenas. As estátuas de talco precisam — para serem convenientemente cantadas pelos manequins de cera — de ritmos emolientes, pervertidos e agônicos à meia-luz de pistas de dança mínimas, pois o amor das estátuas e dos manequins não pode se executar senão à vista dos demais. E como é um amor que, em geral, não resolve, que lhe resta senão exibir-se? E para exibir-se, que lhe resta senão estimular a morbidez dos ritmos que propiciam essa exibição?

O chamado “círculo vicioso” de Machado de Assis?

Vicioso, bem certo o círculo seria, no caso, a pista de dança.

Mas estou ficando muito inteligente demais. E é muito Machado de Assis para uma crônica só...


Revista Flan, 9 de agosto de 1953