Prosa dispersa


Uma casa em Norman Place, L.A.

UMA CASA EM NORMAN PLACE, L.A.

 

Sim, leitor, trata-se da abreviação de Los Angeles, a cidade da Califórnia onde me chega a primeira carta (longa) de meu caríssimo parceiro Antônio Carlos Jobim. Tom alugou uma casa em Norman Place que, segundo me disseram Sérgio Mendes e Rosinha de Valença, de lá recém-chegados, tem uma porção de anõezinhos de jardim, que certamente farão a felicidade de Betinha, a sua lindíssima caçula; porque Paulinho, o primogênito, já está mais em outra base.

A carta é engraçadíssima. Tom escreve raramente, mas quando o faz dá para armazenar gargalhadas por um mês. Conta-me ele que acorda de madrugada e fica vagando pela casa, trabalhando, tomando café e com um sentimento esquisito de “lack of rabanadas” (falta das ditas).

Diz estar dando um duro louco. Que os nossos sambas “O amor em paz” e “É preciso dizer adeus” já estão devidamente vertidos para o inglês pelo excelente Ray Gilbert, em palavras “profundamente baseadas nas letras originais”. “I want to be like Vinichias!” — diz-me Tom ter ouvido Ray Gilbert dizer, pronunciando meu nome como se lê acima. “Você sabe”, acrescenta meu parceiro, “que certas frases e pensamentos brasileiros não têm tradução possível ou aceitável em inglês. Não só por causa de palavras ou expressões idiomáticas, mas também porque certos pensamentos não existem aqui. Com uma filosofia tão diferente da nossa certos pensamentos nossos, aqui pra eles, tornam-se enigmáticos e obscuros. Mas vai se fazendo o que pode.”

Depois cita-me ele as várias maneiras como tem ouvido pronunciar a palavra Ipanema: “Ipanerma, Ipaderma, Ipanonha, Aipanima, Ipotonha, Iponhonha e Ipanamo.” E fala também da corrida comercial para o vocábulo nominativo do querido bairro, que com a decisiva demão, ou melhor, “devoz” de Astrud, pusemos em circulação internacional. Já apareceu um “The boy from Ipanema”; o LP de Paul Winter com Carlos Lyra chamar-se-á “The sound of Ipanema” (“O som de Ipanema”) e se não me engano o LP de Menescau, a ser brevemente lançado, tem também Ipanema no meio. Tanto melhor para o querido bairro e seus tamoios, sobretudo os que frequentam o Zeppelin e o Veloso: bares onde mais se costumava ver a desgrenhada figura do maestro traçando a sua cervejinha.

“Tenho lutado muito para tirar o chapéu de mexicano que querem botar na nossa música”, finaliza Tom. “Este problema já vem, há dezenas de anos, estragando tudo o que sai da América Latina. Compositores como Austin Lara (México), Ernesto Lecuona (Cuba) e Ary Barroso (Brasil) estiveram por aqui e voltaram desolados diante do processo (e muitos outros que me foram citados). Sei que a música no Brasil é super e nada tem de sub. Ary, Lara, Lecuona, todos voltaram aos bares de suas terras de origem com uma mágoa a mais. Ralph Pier foi o editor americano que fundou a SBACEM, a Sociedade Mexicana e tantas outras na América do Sul. Especializou-se em música latino-americana e hoje sua viúva, que possui castelos na Califórnia, na Itália etc. tem pilhas e pilhas dessas músicas. Devido ao mau tratamento que lhes foi dado quase nada aconteceu. Talvez menos de 2% delas se tenham tornado sucessos. Nessas pilhas e pilhas que vão até o teto e que foram adquiridas por uns magros dólares você encontra o Ary, o Caymmi, os boleros e se você insistir, nós dois. Creio que é mais que tempo de mudar essa situação. Aqui na Califórnia estão à nossa disposição “cobras” como Johnny Mercer, Sammy Kahn, Ray Gilbert, Bob Russel etc. — só que esses homens não querem trabalhar para a EMI seus editores.”

Como se vê, o trabalho de Tom na Califórnia é de uma utilidade a toda prova. Com boas versões, os bons cantores começarão a cantar nossos sambas e canções em muito maior escala. Só agora estão realmente começando, e isso graças ao trabalho incansável de meu parceiro que, primeiro com Norman Gimble e agora com Ray Gilbert, tem lutado pela preservação do espírito de nossas letras. Pode ser uma coisa precária, para os apologistas do penico no samba, ouvi-lo cantado em língua estrangeira. Mas que certamente amplia de muito a nossa área de influência, e nos traz novas divisas, isso é inegável. E disso poderão aproveitar também os compositores menos bafejados pelo sucesso. Tom está abrindo caminho para todos. E procurando fazê-lo dentro de padrões de qualidade. Quanto ao mais, o importante é que nossos sambas e canções sejam bons. Se venceram no estrangeiro tanto melhor... Só os invejosos não veem que um dólar ou outro a mais não faz mal a ninguém. E que é difícil encontrar gente mais “dura” que compositor popular...


Diário Carioca, 20 de janeiro de 1965