Livros


Apesar de constituir sua figura pública pela poesia e a canção popular, Vinicius foi um dos grandes prosadores de sua geração. Uma geração, aliás, em que a boa prosa do tempo era cristalizada no gênero carioquíssimo da crônica.

 

Com o amplo número de jornais que circulavam na cidade e com um time de escritores que ia de Rubem Braga a Carlinhos de Oliveira, de Carlos Drummond de Andrade a Clarice Lispector, de Fernando Sabino a Nelson Rodrigues, Vinicius se instalou entre eles como um cronista que transmitia para a prosa os mesmo motivos e a mesma leveza de estilo que apresentava ao público em seus poemas.

A maioria de seus textos em prosa teve origem na imprensa carioca dos anos 1940 e 1950. Vinicius manteve estreita relação com as redações, escrevendo não só crônicas, como também críticas de cinema e textos sobre música popular. Passou por jornais e revistas como A Manhã, O Jornal, Diário Carioca, Diretrizes, Vanguarda, Última Hora e Fatos e Fotos. Também escreveu para semanários que marcaram época como o Flan, Senhor e O Pasquim. Muitos desses textos foram reunidos em dois livros de crônicas: Para viver um grande amor (1962) e Para uma menina com uma flor (1966), publicações em que a prosa e a poesia convivem nas mesmas páginas. 

A prosa de Vinicius sintetiza como poucos um espírito de época da literatura e da vida cotidiana brasileira, atravessadas pelo interesse em seus personagens, suas paisagens e seus grandes criadores.


O primeiro grande conto-do-vigário
Vinicius de Moraes
Poesia/crônica

O PRIMEIRO CONTO DO VIGÁRIO


Em seu Tesouro da fraseologia brasileira, o professor Antenor Nascentes, num período que talvez não seja dos mais brilhantes desse mestre do idioma, mas que, em todo caso, esclarece o assunto, define conto do vigário como: “Modalidade de furto na qual o ladrão conta à futura vítima (o otário) uma história complicada de grande quantidade de dinheiro (originariamente entregue pelo vigário de sua freguesia) aí presente dentro de um embrulho (o paco), dinheiro esse que ele deseja confiar provisoriamente, por comodidade ou necessidade, a uma pessoa honesta em troca de algum dinheiro miúdo de que precisa no momento. Burla, logro, intrujice.”

A modalidade é conhecida no Brasil, onde houve o inesquecível caso do mineiro que comprou um bonde, instalou-se nele e sentiu por algum tempo a glória de ser proprietário de um grande semovente, só verificando o logro em que caíra quando se pôs a dar ordens ao motorneiro. O Rio é um grande centro de vigaristas, por isso mesmo que recebe vastos contigentes provincianos, gente simples e de boa-fé que vai na charla desse outro vasto contingente de malandros de que está cheia a cidade.

Foi meu amigo o poeta João Cabral de Melo Neto quem primeiro me chamou a atenção para isto que se pode dizer constitui o primeiro grande conto do vigário da história. É provável que tenha havido antecedentes, mas o conto do vigário em questão pode ser considerado o pai de todos, de vez que seu autor foi Rodrigo Díaz de Vivar, herói popular espanhol, a quem, pela bravura em campo de batalha, cognominaram El Campeador. Isso, no século XI.

A burla está na grande epopeia, espanhola, e quem quiser pode verificar com os próprios olhos. Dá-se que o Cid, intrigado por elementos da corte que, de inveja, o indispuseram com don Afonso, viu-se na contingência de sair de Burgos e acampar com seus homens num arraial cerca da cidade. Foi quando sobreveio Martín Antolínez (seu parceiro no conto do vigário) não só para confortá-lo moralmente como para oferecer-lhe seus serviços. O Cid propôs então o conto:

Con vuestro consejo — bastir quiero dos arcas
inchamosla d’arena — ca bien serán pesadas,
cubiertas de guadalmeci — e bien enclavadas.

Em resumo: o Cid queria que seu amigo construísse duas arcas bem bonitas, forradas de couro e pregadas a belos cravos, que as enchesse de areia e...

Por Raquel e Vidas — vayádesme privado
quando en Burgos me vedaron compra — y el rey me a ayrado,
non puedo traer e laver — ca mucha es pesado,
empenar gelo he — por lo que fore guisado;
de noche lo lieven — que non lo vean cristianos.
Veálo el Criador — con todos los santos,
yo más non puedo — e amidos lo fago.

Para quem não entende o castelhano arcaico (eu também não entendo tudo não, não pensem...) o que o Cid disse foi o seguinte: para Antolínez ir procurar dois usurários locais, Raquel e Vidas, e dizer-lhes que, como ele não podia comprar nada em Burgos, por estar sob a ira do rei, nem levar suas arcas carregadas de despojos, por serem muito pesadas — se não topariam que ele, o Cid, as empenhasse por um dinheirinho qualquer. A coisa tinha de ser feita à noite, para que nenhum cristão visse nada, porque o Criador, esse ia ver mesmo de qualquer maneira, com todos os seus santos: aliás, ele, o Cid, passava o conto do vigário porque não tinha mesmo outro jeito, era forçado.

Raquel e Vidas, por ganância, sabedores de que o Cid tinha colhido grandes despojos em suas lutas contra mouros e o rei de Granada, toparam o negócio. Vieram à tenda do Cid e levaram as duas arcas em troca de um pago de seyscientos marcos. Muito obsequioso, Antolínez ainda o ajudou no transporte e cobrou um par de calças de comissão.

O conto do vigário foi, assim, completo, inteiramente dentro da definição de Antenor Nascentes: com o ladrão (o Cid — e que a literatura me perdoe chamá-lo assim, ao grande herói), o otário (no caso dois) e o paco (as arcas cheias de areia). Não podia ter sido mais perfeito, nem de espírito mais carioca.

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