Livros


Apesar de constituir sua figura pública pela poesia e a canção popular, Vinicius foi um dos grandes prosadores de sua geração. Uma geração, aliás, em que a boa prosa do tempo era cristalizada no gênero carioquíssimo da crônica.

 

Com o amplo número de jornais que circulavam na cidade e com um time de escritores que ia de Rubem Braga a Carlinhos de Oliveira, de Carlos Drummond de Andrade a Clarice Lispector, de Fernando Sabino a Nelson Rodrigues, Vinicius se instalou entre eles como um cronista que transmitia para a prosa os mesmo motivos e a mesma leveza de estilo que apresentava ao público em seus poemas.

A maioria de seus textos em prosa teve origem na imprensa carioca dos anos 1940 e 1950. Vinicius manteve estreita relação com as redações, escrevendo não só crônicas, como também críticas de cinema e textos sobre música popular. Passou por jornais e revistas como A Manhã, O Jornal, Diário Carioca, Diretrizes, Vanguarda, Última Hora e Fatos e Fotos. Também escreveu para semanários que marcaram época como o Flan, Senhor e O Pasquim. Muitos desses textos foram reunidos em dois livros de crônicas: Para viver um grande amor (1962) e Para uma menina com uma flor (1966), publicações em que a prosa e a poesia convivem nas mesmas páginas. 

A prosa de Vinicius sintetiza como poucos um espírito de época da literatura e da vida cotidiana brasileira, atravessadas pelo interesse em seus personagens, suas paisagens e seus grandes criadores.


Relendo Rilke
Vinicius de Moraes
Poesia/crônica

RELENDO RILKE
(E com direito a Jorge Amado)


Ao som das canções de Sarah Vaughan, dei ultimamente — embora já dele tão distanciado por tantas e tão grandes causas — de reler o poeta Rainer Maria Rilke. Andei folheando as Cartas a um jovem poeta, os Sonetos a Orfeu e algumas Elegias de Duíno. E o que tenho a dizer é o seguinte: poucos seres tão poéticos nasceram nunca de uma mulher. Pouquíssimos, como esse Grande Enfermo, viveram tanto em poesia e se abandonaram mais fundamente, náufrago irremediável, à avidez de suas águas onde o esperava o indizível abandono.

Nunca vida humana fechou-se mais completamente dentro de uma mística. Chega a ser impressionante. Rilke passou, como aquele “afogado pensativo”, a descer os “azuis verdes” dos céus e dos rios que a visão de Jean-Arthur Rimbaud confundiu no seu poema “Le Bateau ivre”. O poeta viveu em transe poético constante, amargurando seu espírito contra todos os temas da Vida, do Amor e da Morte, a que piedosamente amou como uma única entidade.

Sua simplicidade como poeta nasce dessa longa tortura lírica de ver a morte como um amadurecimento da vida, numa total compensação. Rilke acreditava que a morte nasce com o homem, que este a traz em si tal uma semente que brota, faz-se árvore, floresce e frutifica ao se despojar do seu alburno humano. Seus poemas menores vencem lentamente todos esses “graus do terrível”, num crescimento espontâneo para a grande inflorescência, de onde penderão os melhores frutos, desejosos de renovação na terra.

Em 1910 Rilke terminava os seus famosos Cadernos de Malte Laurids Brigge, onde contou, com uma beleza raras vezes alcançada em prosa, a história elegíaca da destruição de um ser votado à fatalidade irremediável da mágoa. Porque é mágoa, mais que angústia, o que colhemos dessa narrativa: a mágoa do mal-entendido humano, o solilóquio desolador do homem desajustado à vida. A qualidade do sofrimento que lhe vem dessa torturante criação, como que lhe afina ainda mais a sensibilidade, já de si tão aguçada para todos os sussurros da poesia. O poeta pena, como penou por um momento o Cristo, da coexistência íntima da dúvida e da certeza, enquanto vagueia, morbidamente enfraquecido pela doença, pelos lugares que mais ama na Europa: Paris, a Rússia e os países escandinavos, intermitentemente.

Em fins de 1911, instado pelos príncipes de Tour e Taxis, Rilke vai passar sozinho o inverno no Castelo de Duíno. Um belo dia de janeiro, passeando às bordas de um penhasco sobre o Adriático, diz ter ouvido no vento o mistério de uma voz que lhe dizia: “Quem, se eu gritasse, me ouviria em meio à hierarquia dos anjos?” Eriçado, e ao mesmo tempo atônito com o milagre dessas palavras que lhe surgiam com a própria poesia desejada, o poeta as anotou e, nesse mesmo dia, escrevia o primeiro movimento desse bloco sinfônico a que chamou Elegias de Duíno. Tão temperados se achavam nele os motivos da obra em perspectiva que, em poucos dias, escrevia a segunda da série e o começo de quase todas as outras.

Mas o impulso cessou. Por dez anos Rilke calou-se, à espera de que nele as palavras encontrassem seu lugar exato no grande puzzle poético que se desencadeara. Em Paris, na Espanha e em Munique acrescentou fragmentos a algumas das elegias, sofrendo terrivelmente da descontinuidade com que a poesia se revelava. E não seria senão depois da Primeira Grande Guerra, no seu refúgio da Suíça, em Muzot, que num sopro de criação poucas vezes igualado, só comparável talvez a certos instantes de música e de pintura em Michelangelo e Beethoven, escreveria em três semanas as oito elegias restantes, os 55 Sonetos a Orfeu e vários outros poemas a que chamou Fragmentarisches. Fora o último espasmo de vida nesse eterno, sereno moribundo. A Morte, sua amiga, desobjetivava-o poucos anos depois, como “um rio que leva”. Rilke recusou o médico: queria morrer a sua morte.

Mas, depois, o mal-estar em que me deixou essa combinação de Rilke e Sarah Vaughan... Foi quando tive a boa ideia de ler tua novela A morte e a morte de Quincas Berro D’água, Jorge. Que mortes tão diferentes... Que beleza, Jorge, que beleza!

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